Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 18 de outubro de 2020

Primos (2019): fábula fraca sobre quebra de preconceitos

Filme de Thiago Cazado sobre dois garotos descobrindo a própria sexualidade enquanto vivem em um contexto super religioso tropeça demais no humor involuntário e numa forma amadora de fazer cinema.

Na escola, aprende-se que a fábula é uma composição literária geralmente curta e muito comum da literatura infantil, na qual os personagens normalmente animalescos possuem características humanas e, no final, sempre há uma moral para a história contada. Pode-se dizer que “Primos”, longa-metragem de Mauro Carvalho e Thiago Cazado (este último também roteirista e um dos protagonistas) disponível on demand, tenta ser uma espécie de fábula moderna sobre fé e sexualidade.

O jovem Lucas (Paulo Sousa) vive com sua tia católica fervorosa Lourdes (Juliana Zancanaro) em uma casa alugada no meio do mato. Mesmo solitário, Lucas até que é um jovem bem descolado considerando o ambiente em que vive, cheio de tatuagens e com alargadores. A vida pacata dele muda quando Lourdes avisa que está indo para um retiro espiritual e seu sobrinho deve recepcionar Mario (Cazado), um primo do qual nunca ouviu falar que tinha acabado de sair da prisão e que Lourdes decidiu acolher para que pudesse recomeçar a vida. 

Sim, a premissa soa, de certa forma, como uma sinopse de um soft-porn com tons cômicos. E o que acontece é quase isso: Lucas e Mario vão descobrindo que sentem atração um pelo outro conforme vão vivendo naquela casa isolada de tudo e repleta de símbolos religiosos espalhados pelos cantos, mas decidem explorar os desejos da carne ali mesmo. Logo fica claro que tudo em “Primos” é construído com base em estereótipos: o moço quieto e meio afeminado, a família super religiosa, a menina irritante que quer conquistar o protagonista a todo custo, o bad boy ex-presidiário e até o certo tabu de brincadeiras sexuais entre primos, como o nome do filme entrega. Por incrível que pareça, o tema que é tratado com mais naturalidade em toda a trama é o grau de parentesco dos jovens. 

Uma pena que o longa não aproveite a veia cômica que seus personagens demonstram logo no começo da história e siga com ela até o final. “Primos” poderia ter tirado vantagem dos estereótipos estabelecidos caso aderisse mais ao camp, não levando a moral de sua semi fábula como algo tão sério. Uma pena que, na prática, o resultado é apenas uma obra que não sai do superficial, com personagens mal desenvolvidos, momentos de humor involuntários e simbolismos e atuações forçados. 

A sensação que fica neste breve filme (o longa tem menos de uma hora e meia de duração) é de que tudo é previsível ou tão profundo quanto um pires, especialmente as referências usadas para identificar as figuras mais religiosas da trama. “Primos” nunca decide direito se está tirando sarro do catolicismo ou do evangelismo, então acaba colocando tudo no mesmo balaio para justificar a personalidade “fanática” e, como os diretores esperam que o espectador deduza, preconceituosa das crentes. Acaba sobrando até para o paganismo, que aqui é misturado com (e igualado a) rituais satânicos e simpatia de revistinha esotérica. Mario, o “ser estranho” que adentra a casa imaculada de Lucas, é sempre retratado sob a penumbra, a óbvia tentação do menino puro, sem amigos e criado em um lar abençoado por Deus. Mario é, ao mesmo tempo, a cobra e a maçã para a Eva de Lucas. Até mesmo os sonhos eróticos e pequenos momentos de fetiche da dupla (que, vale ressaltar, em nenhum momento se questiona moralmente mesmo estando em um ambiente opressivamente religioso) seguem uma cartilha batida.

Cazado, que possui uma filmografia repleta de tramas sobre amor gay, tentou fazer com que “Primos” fosse uma espécie de fábula para mostrar de maneira didática como a homossexualidade não é pecado e que muitos que falam tanto em nome de Deus negam os próprios pecados para julgar o próximo. Porém, os tropeços e o amadorismo no desenvolvimento da história de amor entre Lucas e Mario fazem com que a moral da história soe oca.

Jacqueline Elise
@jacquelinelise

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