Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Crimes de Família (Netflix, 2020): parada obrigatória

Uma crítica social sobre a realidade complexa do ser feminino enquanto mãe e humano. Um retrato da injustiça, dor e sofrimento.

O  longa-metragem da Netflix é um retrato da “família tradicional brasileira”: branca, classe média alta, hétero, católica e corrupta. A única diferença é que se passa na Argentina. Conta com um início rápido, com travellings por fotos e objetos da casa e antes dos primeiros 10 minutos já se entende a rotina e personalidade do núcleo principal. Esse, é dominado por um casal, Alícia (Cecília Roth) e Ignácio (Miguel Angel Sola), uma criança, o filho adulto do casal e a empregada doméstica. Crimes acontecem envolvendo esses dois últimos, mas a resposta da família à cada um é completamente diferente e é isso o que será desenvolvido.

O roteiro e direção não têm medo de ousadia e nem usam meias palavras: aborto, abuso sexual, drogas, alcoolismo, abandono parental, escravidão, violência contra a mulher, racismo, preconceito, assassinato. Tudo isso e mais é abordado de alguma forma e grau. É um filme que dói na alma, principalmente na feminina, mas ele é extremamente necessário, pois não apenas coloca um dedo na ferida, coloca uma mão inteira, questionadora. De um lado o filho do casal, Daniel (Benjamím Amadeo), um usuário de drogas, acusado de tentativa de assassinato e estupro da ex-esposa, com quem tem um filho. Do outro a empregada de seus pais, Gladys (Yanina Ávila), que é acusada de homicídio com agravante por parentesco, em circunstâncias no mínimo sombrias.

O tema da relação patrões/empregada, mais uma vez aqui pode ser referenciado ao Brasil, com o filme “Que Horas Ela Volta?” de Anna Muylaert, que tem como protagonista uma empregada doméstica (Regina Casé). Aqui se assemelha no drama da convivência no trabalho com chefes que sustentam um discurso de que a tratam “como se fosse da família”. Mas, na verdade é uma relação cruel e de distinção.

O filme argentino também trata do tema da maternidade em vários aspectos: através de Alícia percebe-se que além de incondicional, um amor de mãe pode ser irracional. Com Gladys vemos um lado sombrio e obscuro que é ocultado. Pela ótica da ex de Daniel, Marcela (Sofía Gala), percebe-se o quanto ele pode tornar a pessoa forte para lutar e ter uma vida melhor. É observado como os filhos afetam de forma diferente a vida de cada uma, em diversas curvas.

Nessas curvas, a direção de arte acompanha a evolução (ou involução), principalmente de Alícia, com seus figurinos que se transformam totalmente, mas de forma gradual. Na cenografia cria-se uma metáfora muito importante com um jogo de porcelana, que aparece algumas vezes durante o filme de formas diferentes, usado como uma forma de storyteller. Isso fica muito forte e claro quando ele se quebra, no exato momento de uma metamorfose de um personagem.

O estilo de montagem escolhido é essencial e não linear, permite ao espectador “brincar” de detetive e juiz, o que desperta a imaginação e interesse, mas  não o prepara o suficiente para as verdades. O tempo todo joga com a capacidade de quem assiste de julgamento e cria um auto questionamento sobre o que é ético, moral, certo ou errado. Um exemplo disso é quando Daniel apresenta a sua defesa e se inocenta com tanta emoção que convence, mas depois Marcela conta a sua versão e já se sabe que nem tudo é preto no branco. A justiça é injusta.

Faltando poucos minutos para acabar o filme há um novo plot (que para os mais atentos, não será nenhuma surpresa) e que é marcado pela louça já citada. Isso muda o rumo do roteiro, o que é uma pena, pois transforma o tom melancólico que vinha tendo até então e que seria mais chocante e coerente com a dura realidade que mulheres enfrentam todos os dias. Inclusive, esse longa é baseado em uma história real, que infelizmente, de tão recorrente, já se tornou quase banal.

Se você está num mau dia, esse filme não é recomendável. Na verdade, nunca haverá um bom dia para assisti-lo, mas como dito, é necessário. Porém, pelo menos fica aqui o alerta, esteja preparado para socos no peito e dedos na ferida. Também esteja de coração aberto, esse é o tipo de filme que é necessário de um tempo para digerir e assistir novamente é sempre uma excelente ideia. Um longa que apesar de ser de um streaming, tem um caráter independente e selvagem, uma alma de mulher e mãe ferida, um grito de socorro, uma poesia sangrenta.

Maduda Freitas
@MadudaFreitas

Compartilhe

Saiba mais sobre