Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 15 de agosto de 2020

Relic (2020): tão horripilante quanto a vida real

Dentro da estética do terror, produção australiana escancara a crueza do envelhecimento humano e discute responsabilidades familiares em relação aos idosos.

Assim como na fantasia e na ficção científica, uma das funções do terror é servir como alegoria para trabalhar questões indiscutivelmente reais e humanas no cinema. Com “Relic”, a diretora estreante em longas Natalie Erika James exerce tal propósito com foco, sem se render a possíveis distrações que estimulem a ambiguidade na compreensão do espectador. Sua inquietação como autora está na maneira com que lidamos com a morte próxima e o envelhecimento de nossos pais, sendo que o horror não está longe das sensações que este assunto provoca.

Kay (Emily Mortimer) recebe um alerta de que sua mãe idosa, Edna (Robyn Nevin), está aparentemente desaparecida. A senhora vive sozinha, afastada do centro urbano e não responde aos chamados em casa. A protagonista então viaja com a filha Sam (Bella Heathcote) para averiguar e realmente não encontra a mãe no lar antigo em que cresceu, mas não por muito tempo. Após alguns dias Edna reaparece, sem nenhum indício de onde esteve, porém, não parece ser mais a mesma pessoa que antes.

Se não fosse pela estética arrepiante de silhuetas sombrias, bolores repugnantes e trilha sonora incômoda, a mesma história poderia ser contada como um drama familiar. Diferente de “Hereditário” e do também australiano “O Babadook”, por exemplo, a cineasta não deixa muito espaço para múltiplas interpretações. A experiência do trio formado por três gerações de mulheres é aterrorizante, mas o que se vê de sobrenatural na tela pode ser facilmente descrito como uma projeção psicológica dos conflitos internos das personagens.

É complicado, no entanto, posicionar a obra como um horror psicológico, porque trata de uma situação muito física e palpável, que é a decadência corporal. Assim, a produção mais se aproxima dos exemplares clássicos de David Cronenberg. Além disso, saber que a terceira idade traz limitações é ainda mais cruel quando se trata da deterioração mental, quando alguém próximo que conhecemos e amamos já não é exatamente a mesma pessoa. Não é de surpreender que o gênero de terror seja um campo para articular e discutir a assombrosa questão.

A definição mais apropriada para o título é a referência a algo que sobrevive a épocas passadas e continua presente de algum modo. Natalie inclui em sua trama um objeto, especificamente um vitral, que representa um trauma do passado de Kay, mas também a inevitabilidade da morte e a consequente podridão. O aspecto repulsivo do mofo pelas paredes e da madeira apodrecida, ou seja, da decadência de um lar, encontra um óbvio paralelo com o definhamento da carne humana. No entanto, a diretora vai além e igualmente defende nas entrelinhas do filme sua visão sobre o natureza cíclica da vida ao apontar semelhanças e rimas narrativas entre as três personagens principais.

A linha entre a busca por individualidade e o abandono que pauta o relacionamento entre Edna e Kay – mãe e filha – está implícita na relação entre Kay e Sam. Além disso, os pontos comuns entre as personalidades das mulheres, especialmente sobre a maneira que elas organizam a própria vida, chegam a ser mais notáveis para o espectador que aparentemente para elas mesmas. Tais detalhes que constroem o trio principal preenchem a duração curta do filme, mas não representam um grande quebra-cabeça ou mistério a ser solucionado. Por mais que a atmosfera do medo atenda os fãs do gênero, não há nenhum segredo ou virada mirabolante por trás dos conflitos da história. Mesmo assim, o conto converge para um final emocionante, terno e alinhado com os temas propostos pela realizadora.

Natalie também materializa o pavor na forma da casa, que é cenário central da narrativa. Além de ser tomado por um ser sombrio, o espaço tem regras próprias e dimensões que prendem e libertam as personagens como num pesadelo descontrolado. Não há a menor necessidade de explicação para esses fenômenos sobrenaturais e a diretora nem tenta. O que importa é o simbolismo por trás desse terror, como representações do estado mental das mulheres e como elas lidam com a debilitação da idosa. Vale notar que o corpo idoso não é retratado como algo bizarramente asqueroso, como é feito em “It – Capítulo Dois” e “A Visita” por exemplo. Aqui a forma humana é tratada com respeito, mesmo quando causa sentimentos desconfortáveis – seja na sua velhice ou possível deformidade, algo feito de modo semelhante em “Sob a Pele”. Essas maneiras distintas de tratar o corpo como fonte de horror demonstram o quanto o assunto é sensível e atormenta a humanidade.

Apesar de “Relic” trabalhar seu tema central com clareza e sensibilidade, um tipo de público sedento por um bom mistério ou grandes sustos pode ficar desapontado com o escopo do filme. No entanto, Natalie Erika James exerce um ótimo controle sobre a história contada, o clima construído e também sobre as atuações, em especial a de Emily Mortimer, que se destaca. Dessa forma, a obra é um eficaz exemplo do potencial dramático do terror, oferecendo uma boa oportunidade para refletir sobre nossos medos em relação à vulnerabilidade que chega com a terceira idade, em especial quando se trata dos nossos próprios pais.

William Sousa
@williamsousa

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