Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Perry Mason (HBO, 1ª Temporada): investigação promissora

Baseada em um famoso personagem criado na década de 30, a série simula uma envolvente investigação ao mesmo tempo em que encontra interessantes paralelos com a atualidade.

Criado na década de 30 pelo escritor Erle Stanley Gardner, o advogado fictício Perry Mason já estrelou infinitas obras como um imponente defensor de inocentes. Popularizado na televisão pelo famoso Raymond Burr – ator que interpretou o personagem em uma atração televisiva lançada em 57 – , sua figura se espalhou por diferentes veículos de comunicação e não tardou em conquistar um reconhecimento mundial, crescendo no imaginário coletivo na resolução de crimes mirabolantes. Sempre bastante restrito aos tribunais, entretanto, Mason nunca teve sua complexa personalidade verdadeiramente explorada, resumido por bastante tempo à típica imagem do justiceiro que evita transparecer o seu lado emocional. Ambientada em uma cinzenta Los Angeles de 1932, é justamente esse o foco da caprichada adaptação homônima da HBO, série que captura a essência do gênero noir e ainda encontra espaço para trabalhar importantes questões sociais.

Após o terrível assassinato do bebê Charlie Dodson, o notável procurador E.B Jonathan (John Lithgow) decide se encarregar de um alarmante caso que parece ter muito em jogo. Afetado pela velhice e temendo colocar a própria carreira em risco, ele resolve pedir a ajuda do investigador Perry Mason (agora na pele do ótimo Matthew Rhys), um homem amargurado por sua tênue relação com a família que ganha a vida como um detetive clandestino. Quando a mãe da vítima, Emily (Gayle Rinkin), começa a ser acusada de ter algum envolvimento com a fatídica morte, entretanto, a dupla se vê forçada a amplificar os seus esforços para desvendar o que pode ter sido fruto de uma enorme conspiração. Retrocedendo para explorar as origens do conhecido personagem – escolha que rendeu acusações de descaracterização por uma parcela do público -, tem-se assim uma trama que, criada e escrita por Ron Fitzgerald e Rolin Jones, consegue ir para trás e ainda assim estabelecer importantes paralelos com a atualidade.

Dirigida por Timothy Van Patten (“Game of Thrones“) e Deniz Gamze Ergüven (“The Handmaid´s Tale“), a produção tem como primeiro destaque a excelente construção de sua atmosfera, aspecto que facilita a imersão do espectador no universo apresentado. Belissimamente produzida – conforme revelam os grandiosos cultos religiosos retratados ou as vibrantes sequências nos tribunais, por exemplo – a detalhada recriação de época permite a montagem de uma cidade extremamente viva, um fúnebre microcosmo que banhado por uma fria fotografia e acompanhado da envolvente trilha sonora de Terence Blanchard consegue transmitir o tom sujo de ambiguidade moral que o seriado visa transmitir.

Não suficiente, é gratificante concretizar que o clima de constante incerteza vai além das qualidades técnicas e também se faz presente na boa escrita das personagens, em sua maioria difíceis de se decifrar e quase sempre rompendo com o papel que lhes é imposto pela sociedade. É o caso, por exemplo, da curiosa Alice McKeegan – que tem seu lado mais fantasioso muito bem harmonizado a traços mais realistas pela interpretação de Tatiana Maslany -, figura que desponta como importante líder religiosa e cujo desenvolver das verdadeiras motivações passa a colocar em cheque a pura imagem que deve manter. Indo além, é interessante notar como os demais coadjuvantes também contribuem para a narrativa de superação de códigos sociais, característica muito bem exemplificada pelas presenças de Della Street (a simpática Juliet Rylance) e do honroso Paul Drake (Chris Chalk). Restritos a meros parceiros de Mason em antigas adaptações, aqui eles ganham espaço para crescer como representantes de camadas inferiorizadas, simbolizando respectivamente o ascender de vozes na luta pela emancipação feminina e racial (e atingindo a vontade de se revoltar por conta própria, impedindo que a figura do protagonista se torne um salvador idealizado apesar das características da época).

Em contrapartida, é necessário identificar também as construções contrárias, não sendo poucos aqueles em tela que representam o lado obscuro e falho de diferentes instituições. Tem-se assim, entre muitos outros, o odioso Sr. Barnes – manipulador interpretado por Stephen Root que usa a advocacia como uma mera trilha para o posto de prefeito, despreocupado com a execução da verdadeira justiça – e o temível policial Ennis (Andrew Howard), presenças que denunciam o perigo que o poder excessivo de autoridades empodrecidas pode causar. Como se não bastasse, esses questionamentos são ainda sabiamente elevados pelo brilhante contraste criado entre o ascender de Perry e o mergulhar de E.B. Transposto com sucesso por Rhys como um homem amargurado, decepcionado com a vida pela perda da guarda do filho e praticante de condutas incorretas apesar das boas intenções, a dedicação que Mason passa a nutrir pela defesa de Emily passa a lhe oferecer uma possível chance de redenção, arco que se choca diretamente com a do antiquado mentor. Apesar de extremamente carismático e de sua boa índole, John Lightow incorpora um senhor que se vê afastado das discussões da época, insistindo teimosamente em medidas que parecem apenas afundá-lo e dificultar a situação da moça. Longe de maniqueísmos, tem-se assim uma dupla que retrata muito bem como o “certo” e o “errado” são conceitos relativos, flertando com a gigantesca zona cinza existente entre eles.

Apesar de suas qualidades, seria injusto ignorar que o seriado dispõe de alguns problemas de ritmo, por vezes sofrendo com uma cansativa lentidão – aspecto evidente em especial nos três primeiros episódios -, e de certas discrepâncias na distribuição de seus personagens, com alguns deles – caso do próprio oficial Drake, por exemplo – chegando a “desaparecer” em certos capítulos e retornando apenas quando lhes é conveniente. Nada que comprometa a experiência, no entanto, e que não possa ser resolvido em futuras temporadas, produto dos quais a série mostrou ser digna através de seu fundamental discurso. Dessa forma, fica claro que a obra tem como grande objetivo questionar as principais vozes que ditam um povo, mostrando através de uma empolgante investigação como a moralidade humana é dotada de diferentes camadas e como muitas delas estão dispostas a se curvar ao dinheiro e se subordinar ao poder.

Se aprofundando em uma figura que durante anos não passou de uma caricatura, “Perry Mason” exercita o noir através de uma ótima direção e de um rico elenco de personagens. Costurando habilmente o suspense investigativo com a construção de uma importante fala social, a série da HBO tem muita capacidade para evoluir com o passar dos anos e transmite como poucas a seguinte mensagem: seja a força de um distintivo policial, o alcance de um discurso religioso ou os acalorados argumentos proferidos em um tribunal, não devemos nunca deixar de questionar a honestidade das vozes que ecoam em nossos ouvidos.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

Compartilhe