Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 07 de agosto de 2020

Rede de Ódio (Netflix, 2020): envolvente jornada de um sociopata

Dos mesmos realizadores de "Corpus Christi", drama polonês discute a vulnerabilidade social em relação ao uso das tecnologias correntes por um protagonista interessante, complexo e repreensível.

Em 2020, é impossível ler o título “Rede de Ódio” e não fazer referência à política brasileira. Talvez surfar na polêmica tenha sido o intuito da Netflix ao adaptar o título internacional “The Hater” desta produção polonesa. No entanto, o filme é sobre uma jornada de personagem. As reflexões sobre a utilização nefasta dos recursos da internet são um poderoso contexto para o maior interesse da obra, que é trabalhar seu protagonista, ou melhor, seu antagonista.

Tomasz (Maciej Musialowski) é um jovem que veio do interior da Polônia para a capital Varsóvia estudar Direito com a ajuda financeira dos seus tios distantes. Ambicioso é um adjetivo simples demais para defini-lo e o diretor Jan Komasa compreende este desafio. Em filmes que propõem orbitar seu personagem principal, a primeira sequência geralmente tem como objetivo apresentar a principal característica do “herói” a ser estudado. Nesse caso, a sociopatia. Assim, a produção se inicia como um conto contemporâneo de fundo moral sobre o perigo que as conexões virtuais oferecem quando exploradas por pessoas de escrúpulo duvidoso.

Em busca de aceitação, o rapaz traça um caminho de decisões e consequências pautado por suas dificuldades emocionais. A tese do roteirista Mateusz Pacewicz não se desenvolve a partir da premissa de que seu protagonista é um gênio brilhante e profundo conhecedor de tecnologias, como o Mark Zuckerberg de Aaron Sorkin em “A Rede Social“. Aqui o “herói” é frágil e sua principal habilidade e também principal defeito é justamente sua amoralidade. As atitudes de Tomasz são terríveis sob a perspectiva de uma pessoa centrada, porém a sensibilidade da parceria entre ator, roteirista e diretor é grande a ponto de vender a legitimidade de seus objetivos. Seus métodos é que são deploráveis, logo ele é tão “vilão” para si quanto para os outros personagens em tela.

Esta é a segunda colaboração entre o diretor Jan Komasa e Mateusz Pacewicz. Na primeira, o indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2019 “Corpus Christi“, a dinâmica ambígua dos valores de seu protagonista já estava presente. Nesta segunda, essa caracterização ora egoísta, ora altruísta, ora de bom-mocismo, ora abominável continua consistente na sua complexidade. Além disso, a obra se beneficia da performance de Maciej Musialowski. A mesma história dificilmente funcionaria com um ator menos talentoso. Não se trata de um frio sociopata sem expressões. Suas emoções são legíveis sem precisar de palavras de suporte, e estão tão bem definidas que cada nuance serve a um ponto da narrativa. Trata-se de um ótimo exemplo de sinergia entre roteiro, direção e atuação no cinema.

Em “Rede de Ódio”, três características técnicas são empregadas com frequência a ponto de marcar estilisticamente a obra. Primeiro, a montagem apresenta um ritmo impreciso que às vezes corta um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, dependendo do momento. Porém, mais chamam atenção as sequências com tempo levemente alterado, seja para descrever ações paralelas ou para adiantar as consequências de uma situação em andamento. Em contraste com o que Christopher Nolan costuma fazer por exemplo, são decisões sutis de edição que podem passar despercebidas, mas trazem valor à narrativa. Em segundo, o tema recorrente de janelas distantes e recortes de luz, som e quadro, que permitem perceber muito, mas nunca toda a complexidade – assim como a mente de Tomasz. E em terceiro, o emprego da trilha musical para ilustrar subjetivamente o estado mental do personagem. Essa técnica ao lado da assertividade da câmera, que nunca esquece quem é seu protagonista, permite que o espectador entenda a perspectiva do jovem, por mais obscena que seja. A consequência é a tal da “humanização” do vilão – imprescindível para que o público acompanhe sua história com interesse até o fim.

Alguns momentos destoam em estilo, como uma sequência que faz referência ao livro “A Arte da Guerra” de Sun Tzu e quando os gráficos de um jogo virtual passam a exercer uma função maior no filme. Somados à maneira quase em formato de capítulos que se dividem os eventos decisivos do roteiro, tais características dilatam a percepção do tempo e fazem parecer que se trata de uma minissérie e não de um longa ordinário. Quando o rapaz tem êxito ao orquestrar um confronto entre manifestantes políticos, por exemplo, a sensação é semelhante ao terceiro ato, mas ainda resta bastante da trama a ser contado. Assim como os resultados das decisões de Tomasz são sempre mais dramáticos que suas motivações, a narrativa continua sua escalada de eventos até as últimas consequências.

Sobre a temática do uso das redes para manipulação de opiniões e outros propósitos ainda mais graves, o filme serve como uma fábula instrutiva. Assusta pensar que alguém com objetivos tão “banais” como Tomasz possa ter acesso a recursos extremamente perigosos para a sociedade. Esse assunto sozinho já justificaria a história, mas de certa forma a obra vai além, expondo a vulnerabilidade das nossas conexões em geral. Ela acontece no nível pessoal, marcada pelo núcleo dos tios e do interesse amoroso do jovem; no nível profissional, pelas relações entre os funcionários da agência em que ele trabalha; e no social, pela sensibilidade da campanha para prefeito de Varsóvia e das vozes de grupos extremistas.

O desfecho do arco de Tomasz pode não ser tão catártico quanto talvez se espere, mas nem por isso deixa de ser eficaz. Fica o convite para apreciar a rima visual construída na última cena em relação ao momento inicial dos personagens envolvidos. E fica também a reflexão final sobre os possíveis limites da liberdade de expressão e do uso da tecnologia para “potencializá-la”. Se por um lado há regras claras contra o plágio (como o filme aponta em sua abertura) e para muitas das coisas que acontecem no outro extremo da trama, a linha que divide o certo e o errado no meio dessa jornada ainda é bastante tênue e subjetiva.

William Sousa
@williamsousa

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