Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Normal People (Starzplay, Minissérie): íntima e silenciosa história de amor

Com atuações memoráveis, personagens complexos e uma ótima direção, a série original do Hulu e distribuída no Brasil pelo Starzplay é uma belíssima história de amor moderna.

De todos os temas retratados pela ficção, tanto na literatura, como no cinema e na televisão, o amor talvez seja aquele que mais se repete. Mesmo que abordado por maneiras diferentes, em momentos distintos da história, com casais de diferentes orientações sexuais, cores, nacionalidades e idades, todas as obras, que vão desde o século XVI quando Shakespeare escreve “Romeu e Julieta”, até a contemporaneidade quando Richard Linklater lança sua trilogia do “Antes do Amanhecer”, possuem um ponto em comum. Elas falam sobre duas (às vezes mais) pessoas que se conhecem, se conectam uma com a outra, se apaixonam e iniciam uma jornada juntos. É justamente sobre isso que trata “Normal People“, minissérie distribuída no Brasil pelo Starzplay, originalmente produzida pelo Hulu.

Dirigida por Lenny Abrahamson e Hettie Macdonald, a narrativa conta a história de Marianne (Daisy Edgar-Jones) e Connell (Paul Mescal), colegas de classe de uma escola no interior da Irlanda. Apesar de estudarem juntos, os dois têm vidas sociais totalmente diferentes: Marianne tem poucos amigos e é considerada a menina esquisita da turma por sempre fazer comentários sarcásticos e, muitas vezes, maldosos; Connell faz parte da turma dos populares, é o jogador de futebol bonito e carismático de quem todos gostam. Assim, seus caminhos só se cruzam quando a mãe de Connell se torna faxineira na casa de Marianne e ele passa a buscá-la todos os dias no fim do expediente, tendo que entrar na casa para esperá-la. Durante esses poucos minutos de contato que passam a ter diariamente, Connell e Marianne percebem que são mais parecidos do que pensavam. A partir disso, a série acompanha os altos e baixos do relacionamento dos dois, desde a escola até o fim da faculdade.

Baseada no livro homônimo de Sally Rooney, que também se encarrega de co-escrever o roteiro, o tom da obra já é estabelecido em seu próprio título. É uma narrativa sobre duas pessoas normais, com problemas normais, vivendo vidas normais, mas que, em meio a essa pacacidade, têm a sorte de se encontrar um no outro, de criarem uma ligação tão forte que, não importa quanto tempo passe, se mantém intacta. A normalidade presente no enredo dos personagens faz com que eles sejam extremamente reais, dilatando o envolvimento que o público tem com o que está sendo contado. É como se quem está assistindo não só conhecesse Marianne e Connell, mas também se veja em suas personalidades e atitudes. Essa identificação que acontece está atrelada não somente à tangibilidade dos protagonistas, como também à profundidade de cada um deles.

À primeira vista, Connell é o típico adolescente popular de séries e filmes juvenis. É o atleta por quem todas as garotas se apaixonam e o favorito entre os professores, sempre sorrindo e sempre muito simpático. Mas, quando visto sob um microscópio, percebe-se um jovem extremamente sensível, repleto de sentimentos reprimidos e com uma consciência singular em relação ao mundo. Assim, por ser alguém que não se mostra por completo e guarda para si as impressões sobre tudo e todos que estão ao seu redor, é no silêncio que o personagem se apresenta, sendo construído a partir de tudo aquilo que não é dito, de todos os gestos não propagados, de todas as ações contidas. Essa construção, além de ser brilhantemente elaborada pelo roteiro, também é perpassada de forma impecável por Paul Mescal. Rememorando Adam Driver em “História de um Casamento”, Mescal entrega uma atuação carregada de nuances e subjetividade em que, apenas com um olhar ou uma gesticulação, consegue fazer a audiência entender tudo que Connell está sentindo naquele momento, como se soubéssemos uma passagem secreta para acessar seus pensamentos mais profundos.

Em contrapartida, se Connell é um protagonista que se estabelece pelo silêncio e por sua timidez, Marianne é quase o oposto. Vinda de uma família rica e problemática, ela é a garota de classe média alta que não tem medo de expor suas opiniões e que sempre tem um comentário irônico na ponta da língua, cortando qualquer aproximação que pudesse ter com seus colegas de escola. Assim como Connell, essa personalidade vai sendo destrinchada ao longo dos episódios, revelando uma pessoa muito sozinha e perturbada pelos abusos que sofreu durante anos. Destarte, Marianne é coberta de particularidades, o que nas mãos de alguém sem entendimento poderia se tornar um trabalho árduo para a intérprete. Porém, Daisy Edgar-Jones toma a personagem para si e apresenta o que talvez seja uma das melhores atuações da televisão dos últimos anos. Ela preenche a tela com a sua elegância (acentuada pelo trabalho espetacular da figurinista Lorna Mugan), delicadeza e, acima de tudo, emponderamento e resiliência.

Aliás, se tratando de Marianne, é importante destacar o episódio nove – um dos melhores da série -, pois é nele que não somente a atuação de Edgar-Jones alcança seu pico de magnificência, como é também neste momento que Marianne desnuda-se de todas as máscaras que utilizava para se manter firme, e toda a sua vulnerabilidade e instabilidade se expõem. É aqui também que se percebe como ela é um retrato fiel de uma geração de mulheres independentes que cresceram com ideais feministas, mas que carregam dentro de si a inquietação de viver em uma sociedade que ainda beneficia o sexo oposto e que ainda consente os abusos cometidos contra elas.

No entanto, apesar das atuações impecáveis, o mérito da complexidade da construção dos personagens está principalmente em seu roteiro. Assinado por Sally Rooney, Mark O’Rowe e Alice Birch, ele é composto por diálogos extremamente naturais, sutis e sinceros, que abordam desde miudezas do cotidiano, até discussões sobre assuntos mais contundentes, como feminismo, depressão e as diferenças de classe. É revigorante ver tais debates serem trazidos para a tela de uma maneira tão real, com as opiniões e posicionamentos de Connell e Marianne mudando de acordo com seu amadurecimento, mas sempre se mantendo fiéis a quem eram no início.

Essas interações e conversas dos dois protagonistas, tanto entre si como com o que estão ao seu redor, se tornam ainda mais belas pelo olhar dos diretores Lenny Abrahamson e Hettie Macdonald, que conseguem transformar em imagem o mesmo sentimento de intimidade e quietude provocado pelas palavras escritas no livro originário da série. O uso constante do desfoque, por exemplo, permite que se repare em detalhes que normalmente passariam despercebidos, como as partículas de suor em seus rostos ou a rapidez de sua respiração, provocando uma imersão que faz com que o público consiga sentir toda a sensibilidade daqueles momentos. O mesmo efeito é produzido pelos close-ups encantadores e pelas (várias) cenas em que Marianne e Connell são filmados pelas costas (momentos que só acontecem quando não estão um com o outro, demonstrando a solidão que sentem nestes momentos). Ao optar por uma direção que prioriza as minúcias, Abrahamson e Macdonald criam uma atmosfera intrínseca e singular.

Íntima e silenciosa, a grandeza de “Normal People” não está somente no excelente trabalho feito pelos atores principais, na beleza de seu roteiro e na minuciosidade de sua direção, mas está no ato de transformar uma premissa simples e já realizada diversas vezes em uma história de amor moderna, que é contada não através de grandes declarações ou de discursos dramáticos ou de eventos épicos, mas sim a partir da troca de olhares, das conversas de pé de ouvido, dos pequenos detalhes. Detalhes que nos fazem entender porque, como dito por Marianne, “não é assim com outras pessoas”.

Ana B. Barros
@rapadura

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