Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de julho de 2020

#RapaduraRecomenda – O Corcunda de Notre Dame (1996): desafiando o controle moral

Belissimamente animado e trazendo ótimas canções, o filme constrói carismáticos personagens para trabalhar a importância de se lutar contra empobrecidos códigos morais.

Responsável pela criação de verdadeiros clássicos do gênero, os estúdios Disney sempre foram extremamente habilidosos na adaptação de marcantes contos da literatura para a animação 2D. Especializados na criação de inesquecíveis musicais, eles imortalizaram diferentes canções nas grandes telas, composições que conseguiram preservar perfeitamente a essência do material de origem em atrações igualmente cativantes para crianças e adultos. Revestidas, além disso, de um estonteante trabalho estético, surgiram aventuras que repercutem até hoje no imaginário popular e são capazes de dar uma verdadeira sobrevida às suas bases, além de ampliar o alcance de suas poderosas mensagens. É uma pena, portanto, que nem todas essas produções tenham alcançado a mesma popularidade, caso do ótimo “O Corcunda de Notre Dame“. Injustiçado perante a gigantes como “O Rei Leão” e “Aladdin“, por exemplo, o filme equilibra muito bem a sua contagiante energia cartunesca com o complexo discurso idealizado por Victor Hugo em seu livro fonte.

Nascido com sérias deformidades em seu corpo, o corcunda Quasimodo (Tom Hulce) passa os dias de sua vida no topo da imponente Catedral de Notre Dame, encarregado de tocar os sinos da igreja. Afastado da sociedade desde a infância, ele é constantemente vigiado pelo arcebispo Claudde Frollo (Tony Jay) – poderosa figura religiosa que utiliza o medo para mantê-lo isolado – e tem como únicas companheiras três gárgulas falantes (dubladas pelos artistas Jason Alexander, Charles Kimbrough e Mary Wickes) com as quais compartilha suas angústias. Com a chegada de um grandioso festival, o protagonista decide romper o seu isolamento e acaba conhecendo a enérgica Esmeralda (Demi Moore), uma linda cigana perseguida pelas autoridades por quem acaba se apaixonando. Determinado a conquistar o seu grande amor, ele embarca em uma empolgante jornada em nome de sua liberdade e aceitação social. É essa a bonita premissa do filme dirigido por Gary Trousdale e Kirk Wise, que alcança uma considerável profundidade na transmissão de sua mensagem.

O primeiro destaque da produção se encontra em seu vibrante visual 2D, formato típico dos desenhos da época que aqui constrói uma envolvente ambientação. Seja a impressionante captura da grande catedral, a detalhada cidade testemunhada pelo esperançoso olhar do Quasimodo, sejam as divertidas manifestações culturais dos ciganos (que ainda apresentam coloridos figurinos animados), é quase impossível não se encantar com o apurado refinamento estético que traduz a beleza interna do protagonista. Aliada a essa virtude, está a maioria dos números musicais, que acrescentam excelentes músicas aos lindos cenários (escritas por Stephen Schwartz, compostas por Alan Menken e bastante elevadas pelo ótimo elenco de voz). Destacam-se grandiosas sequências, como as de “Topsy Turvy” e “Out There“, todas fundamentais para o aprofundamento das personagens e sempre eficientes para o avançar da trama. Deve-se reconhecer, no entanto, que mesmo igualmente regidas por letras impactantes, nem todas as apresentações demonstram a mesma criatividade.

Indo muito além de fatores estéticos, o filme também se destaca por seus interessantes figuras que, embora nem sempre sejam tão profundas, permitem em suas diferenças e semelhanças construir uma importante fala. Primeiramente, é digna de elogios a forma como a pureza do personagem principal se transforma ao longo da obra. Inicialmente movido por uma cega benevolência e pela insegurança (estados motivados pelo constante medo da rejeição), é fascinante observar como sua paixão passa a lhe desafiar com sentimentos mais complexos, apresentando-lhe à inveja e outras sensações obscuras com as quais se vê forçado a lidar. Partindo dessas mudanças, é encantador testemunhar não só as novas escolhas que adota como também os contrastes que estas estabelecem com as do vilão Claudde Frollo. Munido de motivações próximas das do corcunda, ele estabelece ao seu lado um interessante discurso sobre os aspectos internos que trazemos em comum, permitindo à plateia questionar as estúpidas perseguições que elegemos para alguns e refletir sobre o que realmente importa na definição de um indivíduo. Bem construído pela direção – mesmo que uma melhor abordagem do passado do vilão pudesse engrandecê-lo -, tal argumento é ainda coroado pela excelente performance de “Heaven´s Light/Hellfire“, sequência musical que ilustra o direcionamento de uma mesma sensação para extremos opostos da moralidade humana.

Em segundo lugar, é curioso observar também os paralelos que são trabalhados entre Quasimodo e Esmeralda, semelhantes em relação ao desprezo recebido dos poderosos, mas donos de distintos níveis de aceitação frente à população em geral. Bonita e hábil no entretenimento do povo, a adoração que a moça recebe contrasta com o repúdio dedicado ao tocador de sinos, conveniente quando limitado ao som dos mesmos, mas repugnante ao desejar mostrar o rosto. Assim, revela-se um sábio comentário acerca da alienação e da indiferença perante às autoridades. Tão miseráveis quanto o protagonista e a cigana, as camadas populares limitam-se a aplaudir as apresentações culturais e odiar os que não se encaixam em determinados padrões, destinadas  a não enxergar que, na realidade, todos lutam por um mesmo princípio. Um segmento que reforça tal ideal é a emocionante condução de “God Help The Outcasts“, canção interpretada pela cantora Heidi Mollenhauer, que traz em sua montagem uma oposição entre os genuínos clamores da cigana excluída e os corrompidos pedidos dos franceses “aceitos”, mostrando como o atraso de certos códigos morais é incapaz de classificar a complexa natureza humana.

Por fim, não há como ignorar a brilhante crítica feita à Igreja, ao denunciar formas de controle moral e conferindo-lhe uma imagem através da deturbada busca por “justiça” que Frollo lidera. Por eras responsável pela definição de certo e errado, a instituição é questionada através da construção de diferentes personagens que desafiam os costumes impostos e são elevados ao longo de um envolvente espetáculo musical a exemplificar como são as ações que diferenciam homens de monstros. Dessa forma, “O Corcunda de Notre Dame” é um vibrante musical da Disney sobre a importância de se batalhar contra o opressivo controle moral, ação que só se faz possível uma vez encontrada a coragem para não se deixar petrificar feito gárgulas.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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