Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de julho de 2020

Anton – Laços de Amizade (2019): rara e interessante visão histórica

Última obra do diretor georgiano Zaza Urushadze retrata o drama de um povo camponês na Ucrânia de 1919 em meio aos conflitos da Revolução Russa.

Um século antes da realização de “Anton – Laços de Amizade“, em 1919, a Ucrânia era palco de uma movimentação de poderes. Em plena Revolução Russa, o Exército Vermelho de Leon Trótsky buscava recuperar influência sobre o território depois que o governo bolchevique anulou acordos pós-Primeira Guerra Mundial. Numa fértil região povoada por camponeses alemães mora a família do menino Anton, cuja infância será marcada pelo avanço do Partido Comunista no vilarejo e pelos conflitos sangrentos que se sucedem.

Dirigido pelo cineasta Zaza Urushadze, esta obra retrata um período formativo para a identidade dos amigos Anton (Nikita Shlanchak) e Jacob (Mykyta Dziad). O primeiro é católico e filho de camponeses alemães e o segundo é judeu e filho do comerciante Josef. Ambas as famílias são relativamente prósperas e, apesar das diferenças religiosas, compartilham o valor do trabalho. Por ser próxima do Mar Negro, a região atraía germânicos que queriam se empenhar com a promessa de muitos frutos, como os grãos que a família do protagonista colhia. No entanto, a área também era alvo do exército de Trótsky, que oprimia violentamente o povo que resistia em fornecer o governo com sua produção.

Apesar de a introdução do filme apresentar um personagem já velho e cansado no futuro e, em seguida, a história como desenrolar das memórias, a obra não segue exatamente a perspectiva exclusiva de Anton, como o título sugere. Tal decisão de limitar a visão dos fatos para os olhos de uma criança seria um desafio possível, mas para melhor retratar a complexidade das relações entre os adultos, o diretor descentraliza o protagonismo do garoto em favor daqueles eventos. Na mesma família, se vê o pai resistente, o irmão político e o tio padre do vilarejo para formar um núcleo de personagens como num romance histórico. Mesmo causando uma quebra de expectativa já que o título antecipa “laços de amizade”, a narrativa é intrigante e pessoal, fazendo com que acontecimentos da trama ganhem vida nos rostos dos envolvidos.

Para tentar esclarecer a complexidade das forças políticas representadas na tela, o roteiro cede um pouco a exposições nos diálogos, mas sem muitos exageros que comprometam a qualidade do texto. A câmera de Zaza Urushadze também é bastante eficiente em criar tensões e construir um clima de opressão, que não se reflete igualmente na fotografia nem na quantidade de sangue derramado. Pelo contrário, busca-se a sugestão da violência e os personagens são em geral frios e contidos, o que não faz com que se acompanhe a trama sem envolvimento emocional. Conhecer o desdobramento dos fatos não ajuda a ter esperança para algum final feliz, mas como todo bom filme, é a jornada que importa.

A ausência de uma empatia especial pelo protagonista é compensada pelas revelações do roteiro, que é descentralizado pela montagem. Os reais papéis de alguns dos habitantes no conflito com os bolcheviques são revelados aos poucos com o progresso da narrativa. A sensação de perigo iminente cresce com a expectativa da chegada de Trótsky ao vilarejo. Esses elementos poderiam estar presentes em um thriller político, mas se sobrepõem aqui à inocência das crianças e às cores que retratam a região como o paraíso prometido em vez do lugar perigoso que realmente é. Se por um lado existe uma discreta nostalgia na participação dos meninos e nas imagens do filme, os sentimentos de um povo acuado e que em breve terá que abandonar a paz que tentavam construir geram uma mistura interessante nas emoções do espectador.

Sem ceder ao melodrama, “Anton – Laços de Amizade” equilibra uma visão inocente e utópica de um momento da história europeia com a injusta e interminável queda de braços nas disputas por poder. Não à toa as crianças representam povos distintos, que são, ao mesmo tempo, participantes e vítimas dessas lutas, já que não conseguem se afastar o suficiente para encontrar a paz buscada. Essa produção vale a pena por tratar através de uma perspectiva rara uma época conturbada da contemporaneidade. Infelizmente, foi o último trabalho do diretor que, nascido e morto na Geórgia, pode utilizar o cinema para deixar sua visão de mundo como legado.

William Sousa
@williamsousa

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