Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 20 de junho de 2020

Um Grito de Liberdade (2019): conflitos maternais para fãs de novelas

Com didática simples e desenvolvimento previsível, melodrama turco narra uma relação maternal cheia de amor e conflitos novelescos, e desafia espectadores ao fim.

O melodrama é um gênero de filme controverso. Como seu objetivo é elevar os tons dramáticos de suas histórias através da atuação, roteiro e composição sonora, há quem o ame e há quem o odeie. Certos países como a Turquia e o Brasil são conhecidos por sua forte produção de novelas e séries de TV que seguem essa linha narrativa. Não é de surpreender, portanto, que o público brasileiro seja um alvo atraente para produções turcas, como a bem-sucedida regravação de “Milagre na Cela 7” disponível na Netflix, e agora com este “Um Grito de Liberdade“.

“Minha Mãe” é a tradução do título original (“Annem“) e também melhor reflete o coração do filme. Ele conta a história do relacionamento entre Ayse (Sumru Yavrucuk) e sua filha única Nazli (Özge Gürel). A liberdade referenciada na versão brasileira vem da predisposição de Nazli para seguir uma vida diferente de outras meninas. Morando no interior da Turquia, país de cultura patriarcal dominante, o destino mais comum de jovens mulheres é casar, ter filhos e cuidar da casa. Esta foi a vida de Ayse, mas ela deseja algo mais para Nazli e a estimula a estudar e perseguir a função de professora. Só tem um problema: para isso Nazli precisará se desgarrar da mãe e da vila onde cresceu.

Inicialmente, o estranhamento pode dificultar o embarque na história. A direção é irregular e sem confiança, demonstrada nas escolhas de câmera e de notas na atuação. As protagonistas trabalham em campos diferentes. A mãe (Sumru) traz todas as emoções para os músculos do rosto, como se estivesse num palco de teatro ou numa pequena TV. Já a filha (Özge) interioriza os sentimentos e os contém no semblante fechado. Quando uma atriz tenta alcançar a outra no estilo, a cena desanda e a artificialidade comum no melodrama se torna aparente. Alguns podem se apressar para julgá-las por um mau trabalho. Além disso, o roteiro nem se esforça: é clichê atrás de clichê atrás de clichê. O pai é bruto, alcoólatra e ignorante. Nazli se muda para a capital, conhece um homem e se apaixona. A estrutura novelesca é visível.

No entanto, por trás do aparente mais do mesmo, o caso a ser feito é que a personagem Nazli é realmente a mulher contida, com tanto rancor acumulado pelas expectativas não alcançadas pelos pais, que ela não consegue enxergar o amor incondicional da mãe e a subestima. Do outro lado, temos uma mulher expressiva, que não é descontente com uma vida simples e limitada, mas cuja dedicação é completamente direcionada um futuro melhor para a filha. Com isso, a oposição das atrizes quanto ao modo de atuar, quando uma não cede ao jogo da outra, só ajuda a pintar as diferenças. Além disso, mesmo navegando por uma sequência de clichês entregue pelo texto, o filme evita se aprofundar em outros relacionamentos que não sejam os que ajudam a contar a história de mãe e filha. Por isso, o título original é muito mais adequado ao filme que o nacional “Um Grito de Liberdade”.

Chega-se então ao aspecto central do melodrama: o sofrimento. Quando os personagens choram, choram com gosto. A mãe Ayse ainda se dá o desafio de oprimir dores com sorrisos de tal maneira que só quem conhece pessoas parecidas consegue enxergar veracidade no trabalho de Sumru Yavrucuk. Tal característica ainda traz um aspecto cômico muito bem-vindo para equilibrar o drama e garantir sua amabilidade. Uma parte do público que não se importa com o caminho previsível desse tipo de novela pode até encontrar a chance de se ver um pouco nos personagens. Apesar de o Brasil e a Turquia terem culturas diferentes, o filme trata de sentimentos universais, fáceis de se relacionar, especialmente sobre o amor entre mãe e filha.

O excesso de didatismo nas cenas, quando o texto explica o óbvio, e a certa simplicidade dos conflitos direcionam este drama para uma audiência menos acostumada com o potencial narrativo do cinema. Quem espera mais de um filme, porém, não encontrará nenhum destaque… até os últimos momentos da história. É quando o roteiro introduz algo inesperado dada a tendência de tudo que tinha sido construído. No entanto, arrisca perder justamente o público que tentou cativar até então. Trata-se de uma decisão audaciosa, que eleva o desafio das atrizes e também coloca o drama em níveis estratosféricos.

Como diz o ditado, o final faz ou quebra um filme. No caso de “Um Grito de Liberdade”, seu término fala muito alto emocionalmente, mas se isso é bom ou ruim depende do modo que se consome esta história. Mesmo tratando-se de melodrama, existe uma diferença entre “A Culpa é das Estrelas” e “Dançando no Escuro“, entre “A Vida é Bela” e “Desejo e Reparação“, a mencionar alguns, na maneira como se sente quando todos estes terminam. Enquanto uns acreditam que o fim está à altura (ou até melhora) o filme, para outros é o banho de água fria que a quebra de expectativa muitas vezes traz. Só quem vivencia os filmes pode dizer o que sente. De qualquer forma, neste rio de lágrimas turco o final é um divisor de águas, para o bem e para o mal.

William Sousa
@williamsousa

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