Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 21 de junho de 2020

#RapaduraRecomenda – O Lugar Onde Tudo Termina (2012): bem-vindas (re)construções

(Re)construindo uma narrativa que se transforma continuamente, Derek Cianfrance entrega um projeto que cativa por sua ousadia.

O que pensar da seguinte sinopse? Luke (Ryan Gosling) é um motociclista acrobata que se apresenta em parques de diversão; quando descobre ser pai de um bebê da ex-namorada decide assaltar bancos para sustentar a família. A princípio, uma história de ação simples viria dessa premissa, não fosse a ambição narrativa do diretor Derek Cianfrance (“Namorados para Sempre“) de reconstruir seu filme e levá-lo para outros rumos. Isso faz de “O Lugar Onde Tudo Termina” uma experiência cinematográfica arriscadamente potente.

Inicialmente, não percebemos tantas inovações no núcleo ao redor de Luke nem de sua jornada para tentar se estabelecer ao lado de Romina (Eva Mendes) e do filho Jason, apesar de suas dificuldades financeiras e do fato da jovem estar em um relacionamento com Kofi (Mahershala Ali). Nesse segmento, destaca-se a caracterização do personagem principal como um sujeito solitário e silencioso, que reprime suas emoções porque quando as libera não consegue administrá-las. Dessa incapacidade de lidar com algo muito intenso dentro de si, acaba reagindo com agressividade, a exemplo de sua decisão de roubar bancos refletir o turbilhão emocional suscitado pelas frustrações em tentar ficar com a família. A atuação de Ryan Gosling se assemelha ao desempenho em “Drive“, também baseado no arquétipo do homem mal resolvido com as emoções que desemboca na violência, mas não se torna uma caricatura repetitiva.

Nesse primeiro momento, o cineasta estabelece um vínculo entre espectador e protagonista que humaniza aquela figura e indica como é seu ponto de vista na trama. Esse elemento se exprime tanto pelas cenas silenciosas em que ele observa Romina de longe quanto pelos longos planos filmados pelas costas do personagem enquanto o seguimos – assim, assumimos sua perspectiva e sentimos sua angústia de estar afastado de quem ama. Em paralelo, podemos ver sua fúria se manifestar nas sequências em que pilota a motocicleta, nem tanto na apresentação no globo da morte no parque, mas nas passagens em que conduz enlouquecidamente o veículo por uma floresta e pelas ruas após os assaltos – tais conduções sempre vêm após ocasiões em que é impedido de ficar com Romina e Jason como gostaria e são decupadas com grande vigor pelo diretor, principalmente na tensão provocada pela perseguição da polícia a Luke.

É justamente com a chegada do policial Avery (Bradley Cooper) para um confronto com o protagonista que a primeira reconstrução do filme acontece. Derek Cianfrance, ao lado dos roteiristas Ben Coccio e Darius Marder, articula a ideia de que pode haver um paralelismo entre indivíduos opostos a partir do entrecruzamento entre personagens antagônicos: o fora da lei envolvido em agressões e roubos e o policial sob a imagem da justiça e da honestidade. Não apenas o texto revela esse conflito central, como também a linguagem se apropria da ideia e transforma a narrativa: após quase uma hora de filme, o foco narrativo é alterado para assumir o ponto de vista de Avery, porém sem abandonar o que estávamos vendo até ali já que a mudança obedece a uma relação de causa e efeito.

Quando a narrativa passa a acompanhar Avery, a caracterização do novo protagonista cria paralelos com Luke: o agente de polícia também tem problemas em processar seus sentimentos, seja quando assiste aos colegas de profissão praticando atos ilícitos e se beneficia disso, seja quando sofre com as consequências psicológicas do confronto com o assaltante. Essa dificuldade faz com que se complique dentro de uma situação criminosa na polícia e se comporte de modo questionável. Esconder seu lado emocional desencadeia as adversidades exemplificadas pela cena em que conversa com uma terapeuta e não admite estar com o psicológico abalado – ela foi filmada com um enquadramento lateral e distanciado no início e com um close repentino na expressão conturbada do personagem posteriormente. Em outros momentos, a aproximação entre os dois homens salta aos olhos quando Avery revive situações da trajetória de Luke, como vestir a mochila usada nos crimes e conversar sobre dinheiro com Romina no estacionamento de um restaurante.

As relações entre o policial e o motociclista apresentam algumas diferenças, que reafirmam como o paralelismo ocorre com figuras antagônicas. A decupagem frenética do primeiro segmento contrasta com o estilo contido do segundo, mesmo nas sequências tensas em que Avery dirige seu carro em direção à ameaça de uma abordagem policial na casa de Romina e a um confronto com um dos colegas de corporação – os movimentos da câmera pelas estradas são cuidadosos e menos espontâneos, transmitindo uma sensação de falsa segurança. Da mesma maneira, as duas famílias representadas se parecem e se distanciam: a simplicidade financeira com algum consolo de uma e o conforto econômico com afastamento emocional da outra.

Ao retratá-las, a produção se reconstrói com outra mudança de foco narrativo e passa a seguir a perspectiva dos filhos Jason e AJ. Esse entrelaçamento promove encontros e desencontros trágicos e dramáticos entre os jovens, estes incapazes de escapar das influências das gerações anteriores e também de se envolver em crimes ou em conflitos morais graves. Jason ressente a falta do pai e tenta entender o que houve com ele, já AJ convive com Avery apesar de não terem uma relação tão próxima; portanto, eles carecem de um vínculo emocional que os prepare para os desafios que encontram. Novamente, há cenas de condução de motos, dessa vez mais simbólicas porque são filmadas ao longo do arco de Jason de buscar alguma ligação com o pai e sob o acompanhamento de uma trilha sonora evocativa dessa busca.

De uma sinopse aparentemente simples, o cineasta dá luz a uma narrativa ambiciosa na qual cada um dos três atos assume um foco narrativo particular. Dessa forma, pode articular as duas famílias com a ideia de que vivências muito diferentes podem se relacionar e revelar paralelos de vida. A articulação atinge o estilo da narrativa com suas reviravoltas de perspectivas, mas sem perder de vista que são personagens de realidades distintas e suas conclusões são mais antagônicas do que paralelas.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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