Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 01 de junho de 2020

Em Defesa de Jacob (Apple TV+, Minissérie): a violência como produto da mentira

Conduzida por um trio de excelentes atuações, a minissérie é uma intensa experiência sobre o peso das mentiras na construção da violência em nossa sociedade.

A psicopatia sempre foi um prato cheio para o suspense, assunto que permitiu o surgimento de incontáveis clássicos na literatura e no cinema. Responsável por imortalizar perigosos personagens como o temido Jason Voorhes – notável símbolo do estilo slasher, tradução mais sangrenta dessas figuras na sétima arte – e o assustador Hanniball Lecter –  representante de uma abordagem mais psicológica por parte das obras criminais  -, o tema foi ganhando cada vez mais profundidade com o avançar dos anos, beneficiado por produções que não só se afastaram das caricaturas do gênero como também alcançaram a televisão. Exemplo disso é o original da Apple TV+, Em Defesa de Jacob“, projeto que inaugura a sessão de minisséries do recente serviço de streaming ao apresentar um instigante caso policial.

Criada e escrita por Mark Bomback (“Planeta dos Macacos: A Guerra”), a atração acompanha a vida de Andy Barber (Chris Evans), um talentoso promotor de justiça que leva uma vida feliz ao lado da esposa Laurie (Michelle Dockery) e do filho de 14 anos Jacob (Jaeden Martell). Extremamente dedicado a sua família, o protagonista segue uma vida pacata resolvendo leves criminalidades e garantindo a justiça em sua pequena cidade. Quando o estudante Ben Rifkin (Liam Kilbreth) é encontrado morto, todavia, ele se vê forçado a resolver o aparente assassinato e restaurar a ordem em meio a abalada comunidade. Tudo piora quando seu próprio filho é classificado como o principal suspeito, obrigando-o a iniciar uma enervante jornada para protegê-lo e provar a sua inocência.

Adaptada do livro homônimo de William Landay, a trama tem na definição de seu tom a sua primeira conquista, envolvendo o espectador em uma narrativa densa e inquietante. Com episódios unificados sob a direção de Morten Tyldum (“Passageiros“), a maratona se beneficia do uso de cores cinzentas e saturadas para criar uma atmosfera opressiva, alavancada ainda pela eficiente trilha sonora de Atli Örvarsson. Não suficiente, é clara a maneira como o firme trabalho do diretor amplifica a imersão do público, sagaz na condução de ambiguidades que dificultam a leitura das verdadeiras motivações de alguns personagens. Através do bom uso de elipses – omissões que o permitem manipular primeiras impressões – e do eficiente desenvolvimento do trio principal, ele consegue aproximar a plateia dos cidadãos que acompanham o desenrolar do caso. Afastando-se da comunidade movida por pré conceitos, todavia, quem assiste se encontra em uma posição privilegiada por presenciar de perto as medidas adotadas nos bastidores, adentrando um sedutor jogo de decifração de facetas. A assinatura de Tyldum impressiona, portanto, pela manutenção dos questionamentos ao longo de todos os oito episódios, mesmo que não exiba o mesmo domínio na dispersão dos acontecimentos que dinamizam a narrativa – com direito a certas revelações que demoram a aparecer apenas para justificar a duração da minissérie.

Também fundamentais para o funcionamento da experiência trabalhada pelo cineasta, seria injusto ignorar a excelente performance dos atores centrais, ótimos na montagem de figuras complexas e que se distanciam de caricaturas. Primeiramente, Jaeden Martell convence ao variar entre momentos de docilidade e gélidas expressões de indiferença, assustando em determinadas passagens e elevando ao máximo as incógnitas apresentadas pelo seriado. Em segundo lugar, não há como negar que é extremamente gratificante presenciar Chris Evans em um perfil muito distante daquele que tanto o popularizou, abandonando o heroísmo e o fantasioso em nome de um caráter mais sombrio e perseguido por traumas do passado. Disposto a realizar o impossível em nome dos que ama, ele traduz muito bem a divisão interna de um homem que, assombrado pelas ações de um cruel ancestral, crê com todas as forças que Jacob não mostrará ter herdado a negatividade de sua linhagem enquanto adota meios escusos que podem acabar confirmando tal suspeita em sua própria pessoa. Como se não bastasse, é também digna de elogios a forte interpretação de Michelle Dockery, atriz que transmite com maestria as sequelas psicológicas de uma mãe forçada a duvidar da bondade de seu próprio filho. É uma pena, todavia, que o mesmo não possa ser dito sobre o elenco de coadjuvantes, o qual, mesmo com nomes como o oscarizado J.K Simmons e figuras potencialmente interessantes como a jovem Sarah (Jordan Alexa Davis) e o duvidoso advogado Neal (Pablo Schreiber), acaba desperdiçado em meio a falas expositivas e arcos pouco inspirados.

Embora perceptíveis em meio a algumas falhas, fica claro que os méritos citados convergem no roteiro de Bomback para a construção de um conto envolvente e que flerta com importantes reflexões sobre as origens da violência humana. Tece-se assim uma interessante análise sobre o peso que as mentiras podem ter em nossas vidas, por vezes contribuindo para o adiamento de importantes discussões sobre a nossa conduta e podendo causar sérios erros no futuro. É o que é bem exemplificado pela trajetória de Andy, na qual são apresentadas as diferentes desculpas e estratégias que ele adota consigo mesmo para se esquivar da possibilidade de Jacob ser violento, mostrando como o afeto pode nos forçar a ignorar problemas que devem ser seriamente reconhecidos. O mesmo é reforçado pelo debate levantado acerca da hereditariedade de certas características, tópico que leva Laurie a se questionar, por exemplo, se ela deu o valor necessário para certas indicações na infância do garoto. Coerente, é uma pena, entretanto, que tal debate fique restrito em várias passagens à questão dos “preconceitos”, mostrando com sagacidade como certas leituras da sociedade podem descontextualizar comportamentos suspeitos – e como tal ação dificulta ainda mais importantes conversas- , mas ao mesmo tempo simplificando um pouco a riqueza da narrativa. Isso acomete também, em certa medida, a articulação sobre a influência da internet em mascarar tais comportamentos, argumento inserido na trama de forma meramente expositiva e que poderia trazer mais camadas em sua abordagem.

Carregada por um trio de ótimas atuações e envolta por um clima inquietante, “Em Defesa de Jacob” é uma agradável experiência sobre a necessidade de se reconhecer as falhas daqueles com quem nos importamos antes que seja tarde demais. Embora tropece em alguns aspectos e não alcance a profundidade digna de todo o seu potencial, a minissérie é um ótimo exercício de tensão e articula satisfatoriamente ideias sobre o possível surgimento de psicopatas na sociedade. Mesmo com alguns argumentos resumidos à exposição, é uma obra que merece ser conferida e pode gerar importantes conversas sobre a produção da violência na sociedade e acerca do necessário desmonte das mentiras que contamos para nós mesmos.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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