Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 02 de junho de 2020

A Guerra de Anna (2018): singelo conto de sobrevivência

Drama russo retrata a sobrevivência de uma criança no contexto da perseguição nazista de maneira contemplativa e sob o ponto de vista da jovem protagonista.

Apesar de se passar na época da ocupação nazista e utilizar o Holocausto como pano de fundo, “A Guerra de Anna” carrega um sentido metafórico. O filme acompanha a protagonista de seis anos tentando sobreviver escondida nas sombras de uma escola abandonada. Trata-se de uma produção russa, ganhadora dos prêmios Golden Eagle e Nika de Melhor Filme em 2019, as duas mais importantes premiações do cinema russo. Dirigida por Aleksey Fedorchenko, a obra entrega uma visão subjetiva da situação enfrentada pela menina e, consequentemente, deixa a imponência do cenário histórico de lado em favor da simplicidade.

Anna (Marta Kozlova) escapa ilesa após sua família inteira ser executada por serem judeus. Em meio aos corpos semienterrados, a câmera de Aleksey passeia com calma, registrando cores e texturas num recorte trágico de modo a dar o tom observador de seu filme. Os primeiros passos da jovem em busca de abrigo predizem que a narrativa se importa mais com as imagens formadas do que com a ação descrita. O espectador nunca se afasta da sua perspectiva, podendo se aproximar de um ângulo subjetivo ao mesmo tempo que mantém uma distância contemplativa. Alternando entre a preferência por planos largos, pelos quais o cenário pode ser varrido com os olhos, e por curta profundidade de campo quando procura direcionar esse olhar, é curioso como se cria o prazer de ver apesar do tema duro e dolorido.

A ação é dividida em pequenos capítulos que levam os dias de Anna adiante, mas atos e viradas de uma estrutura narrativa clássica não estão claramente presentes. Isso faz com que a duração relativamente curta do filme seja essencial para garantir o interesse pela história. A “guerra” de Anna tem o tamanho de seu pequeno mundo. O “grande” objetivo da protagonista é conseguir água para beber, algo que possa comer, tentar não ser vista, enfrentar a solidão e, à noite, explorar as salas da escola que se tornou escritório improvisado para os nazistas.

O fato de Anna se esconder numa chaminé de livros, sobreviver dentro de um local de educação, renascer da terra entre mortos, entre outras situações e escolhas, faz com que a produção seja carregada de representações com forte potencial simbólico, mas que não são esfregadas na cara do espectador em busca de uma moral. Cada um pode projetar uma interpretação pessoal sem que entre em conflito com a proposta do cineasta. Por outro lado, ele abusa de deixas e pontuações sonoras para ressaltar momentos como se fosse uma obra de cinema mudo ou áudio drama. Cria-se então um contraponto incômodo entre som maniqueísta e belas imagens encadeadas sem didatismo.

As decisões de Anna para garantir sua sobrevivência impressionam para uma criança de seis anos. No entanto, para o público que está preso junto à personagem seguindo seu ponto de vista, é possível experimentar maneiras de amenizar a angústia do contexto opressor e acreditar que ela é capaz de cuidar de si. Os pequenos momentos de suspense são suficientes para temer pela vida da menina, mas não são marcantes a ponto de definir grandes viradas de roteiro. Assim, “A Guerra de Anna” se desenrola de maneira minimalista, privilegiando os sentidos e o prazer da contemplação, ao mesmo tempo que permite espaço para reflexão sobre as imagens e símbolos retratados.

William Sousa
@williamsousa

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