Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de maio de 2020

#RapaduraRecomenda – Tubarão (1975): o terror da negligência

Ao explorar o horror que habita as profundezas, este memorável suspense Spielbergiano acerta em cheio ao devolver o ser humano ao seu lugar de presa na cadeia alimentar.

No verão americano de 1975, o então jovem cineasta prodígio Steven Spielberg levava para as telas dos cinemas a aclamada adaptação de “Tubarão”, baseada no best-seller de Peter Benchley. Após décadas de seu lançamento, o clássico segue ainda bastante influente e mais relevante do que nunca, sendo capaz de gerar sustos e ao mesmo tempo conscientizar o público sobre os possíveis horrores gerados pela negligência de governantes inconsequentes.

A história tem início com a fatídica morte de uma jovem banhista, vítima do ataque surpresa de um enorme tubarão branco. Após o incidente, o chefe de polícia, Martin Brody (Roy Scheider), crê que o mais correto seria fechar as praias a fim de evitar novas mortes. Porém, o prefeito da cidade, Larry Vaughn (Murray Hamilton), decide mantê-las abertas visando impedir o impacto financeiro que tal medida acarretaria. Surge então um novo ataque, obrigando o policial a recorrer a um especialista, o oceanógrafo Matt Hooper (Richard Dreyfuss), que ao analisar o caso reforça a necessidade de manter os cidadãos e turistas longe da água. O experiente caçador de tubarões Quint (Robert Shaw) se oferece para matar a fera em troca de recompensa, mas como nenhuma medida eficaz é adotada, consequentemente, ocorrem mais mortes em seguida.

Sabiamente, Spielberg opta por seguir uma abordagem semelhante ao do “mestre do suspense” Alfred Hitchcock, utilizando o movimento da câmera para simular a perspectiva da criatura sem a princípio a expor. Aliás, é justamente a escolha de tais ângulos que concede à criatura um caráter quase sobrenatural, gerando um constante sentimento de pavor e apreensão no inconsciente do espectador. A trilha sonora composta por John Williams é sem dúvida o elemento mais memorável de todo o longa-metragem, em especial a faixa tema do ataque do tubarão, cujo legado transcende a audiência do filme, sendo possível que até mesmo aqueles que nunca tiveram contato com a obra conheçam a icônica melodia composta apenas por duas notas.

Em parceria com Benchley, o roteirista Carl Gottlieb conseguiu adaptar bem o romance, tomando certas liberdades criativas em prol de uma narrativa mais enxuta e fluida. Exceções à parte, há um progressivo desenvolvimento de personagens, sobretudo do trio de protagonistas que apresentam motivações verossímeis e já familiares ao grande público. O oficial Brody, por exemplo, se enquadra no típico arquétipo do herói, atendendo prontamente ao chamado para salvar o dia. O biólogo Hooper, por sua vez, pode ser caracterizado tanto como o arauto, personagem que compartilha informações vitais para que o herói prossiga em sua jornada, quanto o aliado, aquele que está sempre ao seu lado e o ajuda a superar desafios. Já o velho lobo do mar, Quint, segue à risca o arquétipo do camaleão, ora favorecendo, ora prejudicando o grupo graças à sua obsessão pela criatura marinha.

A caçada frenética ao animal e a relação difusa entre os personagens resulta em um terceiro ato simplesmente catártico. Entretanto, ao ser revelado, o monstro infelizmente perde grande parte de sua aura aterrorizante, mas nada tão grave a ponto de comprometer a imersão do público em relação ao que já tinha sido estabelecido anteriormente. Em contrapartida, o desfecho é demasiadamente recompensador e oferece um embate visceral em que se teme a todo instante pela vida do trio.

No papel de um xerife com medo de água, Roy Scheider entrega uma performance convincente e sóbria. O principal ponto de virada de seu personagem surge a partir da cena em que é confrontado pela mãe de uma das vítimas, Sra. Kintner (Lee Fierro), que o esbofeteia no rosto e lhe responsabiliza pela morte do filho. Scheider transfere então uma maior carga dramática a sua atuação, transmitindo o sentimento de culpa através de sua postura e olhar. Outro destaque positivo que merece ser ressaltado é a interpretação de Richard Dreyfuss, capaz de compor um sujeito intelectual e ao mesmo tempo carismático, algo incrivelmente raro na ficção, diga-se de passagem.

Em suma, o clássico “Tubarão” do diretor Steven Spielberg foi responsável não somente por originar o cinema blockbuster tal qual se conhece hoje, como também influenciou uma leva de tantas outras obras do gênero de terror e suspense. Obrigatório para os amantes da sétima arte, a trama provou ainda ser capaz de despertar os medos mais primitivos, além de servir de alerta a respeito dos perigos pós-modernos da sociedade, como o negacionismo de certos líderes políticos e a alienação da população mediante a um cenário potencialmente calamitoso.

Alan Fernandes
@alanfdes

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