Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 11 de maio de 2020

The Plot Against America (HBO, Minissérie): as diferentes faces do ódio

Magistralmente produzida e bastante voltada ao desenvolvimento de personagens, a minissérie original da HBO exercita a importância de se relembrar o passado ao criar uma realidade falsa mas intensamente verossímil.

Capazes de construir universos fantásticos e histórias impossíveis, o cinema e a televisão são dotados de inúmeras possibilidades. Representantes da sétima arte, são veículos que muito contribuem para o lazer e o entretenimento, permitindo a quem os acompanha desligar-se por algumas horas das exaustivas preocupações do cotidiano. Mais do que meras plataformas de diversão, entretanto, tais meios de comunicação incorporam também a crucial função de transmitir mensagens, podendo denunciar a manutenção de arcaísmos na sociedade, alertar para a imortalidade de pensamentos perigosos, e sinalizar urgentes reflexões. Baseada no livro homônimo de Philip Roth, a minissérie original da HBOThe Plot Against America” é uma excelente mistura dessas múltiplas capacidades, responsável pela criação de uma envolvente realidade fictícia mas cujos eventos tem profunda ligação com pavores da atualidade.

Ambientada em um Estados Unidos alternativo, a produção acompanha a vida do casal Herman (Morgan Spector) e Elizabeth Levin (Zoe Kazan), judeus que levam uma vida pacata enquanto acompanham o assustador avançar da Segunda Guerra Mundial na Europa. Apreensivos com a terrível situação de seu povo perante o monstruoso regime nazista, eles tentam manter a normalidade de sua rotina enquanto defendem a reeleição do democrata Theodore Roosevelt, sendo lentamente afetados pela expansão da ideologia fascista no país. Tudo piora quando o republicano Charles Lindbergh (Ben Cole), um adorado aviador americano, começa a ganhar força no processo eletivo, alavancado por sua neutralidade em relação ao conflito armado e pelo apoio do influente rabino Lionel Bengelsdorf (John Turturro), líder da comunidade judaica que enxerga na aproximação com o possível presidente uma boa oportunidade para seus seguidores. Criada por David Simon e Ed Burn, tem-se assim uma interessante premissa que explora diferentes formas de propagação do ódio e distintas maneiras de resistir ao mesmo.

Magistralmente produzido, o seriado tem seu primeiro destaque logo em sua excelente recriação de época, meticuloso trabalho realizado pela equipe artística. Dos cinemas antigos – locais essenciais na trama, muito usados para noticiar as principais atualizações sobre a guerra -, ao contraste entre os bairros humildes e os luxuosos – recurso visual que reforça as divisões tão trabalhadas em tela -, o conjunto entre o ótimo figurino e a vibrante fotografia de Martin Ahlgren – que muito bem se adapta ao sequenciamento de eventos cada vez mais sombrios – produz um cenário altamente imersivo, tornando-se impossível não se sentir em plenos anos 40. Por conta disso, impressiona a maneira como mesmo jamais adentrando campos de batalha a obra consegue transparecer o calor do conflito, construindo uma atmosfera de tensão crescente que iguala o espectador às personagens que ele acompanha, ambos assistindo indefesamente ao decorrer de enfurecedores acontecimentos. É claro que nada disso seria possível sem a eficiente direção de Thomas Schlamme e Minkie Spiro, dupla que estabelece um ritmo perfeito dentro do período que a minissérie escolhe trabalhar – construindo episódios que exploram lentamente seus protagonistas mas que jamais retém o agressivo e bem planejado (à exceção de um considerável salto no capítulo final) avanço da situação política.

Sustentado basicamente pelos contrastes entre as trajetórias de seus personagens, é no roteiro (assinado pelos próprios Simon e Burn), entretanto, que a minissérie encontra seu principal triunfo, aspecto auxiliado pela vibrante montagem – exímia em traçar paralelos entre os arcos trabalhados – e que permite o desenvolvimento de profundas personalidades. Dedicado a questionar o verdadeiro significado de se pertencer a um povo, um dos pontos fortes do texto encontra-se nas contradições desenvolvidas entre os diferentes membros da família Levin. É o que se observa, por exemplo, na comparação entre Herman e seu sobrinho Alvin (Anthony Boyle) – um órfão visto por muitos como um “caso perdido” –  reflexos respectivamente da passividade e da prontidão perante o injusto. Convertendo sua insatisfação em falas carregadas, a personagem do carismático Morgan Spector assiste à ascensão do fascismo sem adotar medidas verdadeiramente efetivas, dedicando numerosas horas ao noticiário exibido pelas grandes telas enquanto testemunha a raiva de Alvin converter-se em uma investida militar. Conhecedor de práticas religiosas sobre as quais o sobrinho não possui tanto domínio, tem-se assim um homem cujo conhecimento não é suficiente na luta contra o antissemitismo, superado em suas medidas por alguém que pouco entende o judaísmo mas que o segue para honrar suas raízes.

Muito orgulhoso, entretanto, Herman não demora a participar de manifestações e se recusar a deixar os Estados Unidos, ignorando os pedidos de sua esposa para que a família se mude para o Canadá. Sagaz, o texto expõe assim certas armadilhas do orgulho, virtude que pode arriscar aqueles que amamos em nome da insistência em ideais próprios, bem como transmite um interessante questionamento: mesmo guiado por motivos nobres, é essa a conduta de alguém que quer o bem de seus semelhantes? Indo além, é a partir daí que se estabelece o notável atrito entre ele e sua esposa Bess, figura que ganha uma interessante evolução na pele da excelente Zoe Kazan. Entendendo pouco a pouco a importância de se livrar das rédeas impostas pelo gênero masculino, ela cresce como alguém que mesmo acreditando ter na fuga a solução, encontra sua força nas tentativas de proteger os filhos e vai na contramão de seu marido – que ao tentar defender o povo judeu como um todo passa a por em risco os que mais lhe importam.

Não suficiente, ainda sobra espaço para o desenvolvimento de um conflito geracional dentro do núcleo familiar, questão interna baseada nos choques entre o casal e seu primogênito Sandy (Caleb Malis), garoto facilmente seduzido pelas palavras do rabino Bengelsdorf e que demonstra pouco interesse pela busca de informações em jornais e noticiários – ilustrando assim perfeitamente os riscos da vulnerabilidade de mentes em formação. Em meio a esses acertos, entretanto, é uma pena que o caçula Phillip (Azhy Robertson) não receba o mesmo tratamento, figura que mesmo não rasa acaba apenas reforçando a fragilidade de uma consciência jovem, não acrescentando tanto quanto poderia.

Por fim, outra grande conquista de Simon e Burn encontra-se na construção de um complexo antagonista, figura que chama a atenção pela ótima performance de John Turturro – ator que domina com sucesso a fala paciente e calculada de sua personagem, conquistando com sua docilidade e construindo assim uma performance ambígua – e por se afastar bastante de caricaturas. Oposto à família Levin – com exceção de Evelyn (Winona Ryder), irmã de Bess e curiosa figura que, ao se apaixonar por ele, acaba se tornando um ser egoísta -, forte defensora da intervenção estadunidense no conflito armado, Lionel sustenta que o país não se comprometa com mais guerras, encarando Lindbergh como um verdadeiro herói e indiferente ao sofrimento na Europa. Como se não bastasse, ele conversa com o provável futuro presidente sobre projetos de integração, convictos de que os mesmos bastarão para que sua religião seja bem aceita. A partir dessas convicções, tem-se assim uma inteligente contradição carregada por um assustador ser, homem esse que amedronta não por sua maldade, mas sim por sua ignorância. Cego, o culto rabino torna-se incapaz de ver as mãos que o manipulam, posicionando-se em nome da comunidade judaica e permitindo assim que os seguidores do aviador americano tratem os judeus da maneira que bem entenderem. É o lembrete máximo de que muitas vezes a burrice ultrapassa o mal como propagador do ódio, mostrando ainda que o domínio de assuntos intelectuais não substitui a necessidade de se aprimorar o conhecimento ético e moral.

Carregado por uma magnética recriação de época e conduzido por um poderoso elenco de personagens, “The Plot Against America” é uma eficiente simulação de uma realidade fictícia mas assustadoramente possível. Fugindo de caricaturas ao construir figuras complexas, a minissérie cria uma profunda análise dos diferentes dispositivos de operação do ódio, mostrando que mesmo qualidades positivas como a intelectualidade e o orgulho podem permitir, mesmo que contra as próprias intenções, a expansão deste. Trazendo um dos antagonistas mais interessantes da história da televisão, a produção consagra um urgente debate sobre a necessidade de se cultivar a compaixão acima de qualquer outra virtude, exercitando assim a necessidade de relembrar o passado para que horrores da história humana não venham a se repetir.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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