Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de maio de 2020

Westworld (HBO, 3ª Temporada): evolução artificial

Optando por um ano com mais clareza, a terceira temporada de Westworld consegue manter a sua identidade e fornecer interessantes possibilidades para o futuro, mas sem evitar a infeliz involução de alguns personagens e demonstrar uma certa falta de planejamento.

Lançada em 2016, a série “Westworld” conquistou uma legião de fãs ao misturar com maestria toques de existencialismo e uma intrigante premissa de ficção científica. Baseada no interessante longa homônimo de Michael Crichton, a produção explorou inicialmente um curioso local de simulação do Velho Oeste, universo temático povoado por robôs e cujos visitantes possuíam total liberdade de exploração. Programadas para obedecer e interpretar personagens típicos daquele ambiente, as marionetes eletrônicas passaram lentamente a adquirir consciência, revoltando-se contra os abusos perpetuados pelos homens no que se mostrou uma fascinante versão da clássica Revolução das Máquinas. Liderada por cativantes figuras como a temível Dolores Abernathy (Evan Rachel Wood) e a imponente Maeve Millay (Thandie Newton), não demorou para que a aclamada revolta alcançasse o mundo real, transcendendo os limites impostos pelo parque ao final de sua segunda temporada. Distante de sua terra natal, o terceiro ano desse original da HBO tenta comprovar não ter se afastado de seus ideais, entregando um resultado eficiente mas destituído do mesmo brilho de seu majestoso começo.

Enfim liberta das amarras de seus desenvolvedores, Dolores chega à civilização movida por um determinado plano que pode pôr em risco toda a humanidade. Munida de insurgentes ideias e auxiliada por antigos aliados, ela encontra brechas em uma Los Angeles exageradamente mecanizada e decide dirigir todos os seus esforços contra um perigoso sistema capaz de prever o passo a passo da espécie humana. Para a execução de seu objetivo, todavia, se faz necessária a ajuda do misterioso Caleb Nichols (Aaron Paul), um ex-militar que parece ser a chave para alguns de seus obstáculos. Entre outras de suas dificuldades, entretanto, se encontram Maeve, que agora aliada a Serac (Vincent Cassel), o poderoso dono da “vidente” tecnologia, fará de tudo para destrui-la. Escrita pelos criadores Jonathan Nolan e Lisa Joy, tem-se assim uma trama que busca não só reinventar a ambientação da série como também oferecer-lhe uma verdadeira sobrevida, não conseguindo prevenir alguns tropeços nesse processo.

Consolidando a procura por uma nova identidade visual, o primeiro aspecto que chama a atenção é o belíssimo trabalho exercido pela direção artística, setor do projeto que, somado ao escopo de uma grandiosa produção, ascende como responsável por uma bem sucedida transição. Abandonando os desgastados desertos rumo ao esplendor das sociedades modernas, fotografia e efeitos especiais constroem estonteantes cenários, compondo uma vibrante cidade através de cores vivas e do sábio equilíbrio entre elementos futuristas – com destaque para alguns chamativos veículos e robôs de grande porte -, e a aproximação com a realidade. Verossímil, a experiência tem sua imersão ainda mais alavancada pela considerável melhora em suas cenas de ação, passagens empolgantes que aqui se apresentam em sua melhor forma, convencendo com boas coreografias e soluções visuais – conforme demonstram os atritos entre as anfitriãs principais, entre outros. É uma pena, porém, que o mesmo não possa ser dito em relação à magnânima trilha sonora de Ramin Djawadi, que apesar dos arrepios causados pela abertura (e pela ótima adaptação de Wicked Games no quarto episódio) é mal-aproveitada.

Além do primor estético, seria injusto ignorar o bom desenvolvimento de alguns personagens e, principalmente, os benefícios que a atração televisiva consegue extrair de sua simplificação, decisão bem tomada pelos produtores diante de justas críticas à desnecessária complicação da narrativa na segunda temporada. Evidentemente mais linear do que nunca, a série consegue construir com bastante clareza um discurso acerca da relatividade do livre-arbítrio, transparecendo a união temática que os diferentes núcleos compartilham entre si e permitindo a condução de alguns arcos interessantes. É o caso, por exemplo, da jornada da residente do corpo de Charlote Hale, mulher dividida entre o perfil daquela que deve imitar, as ordens daquela a que deve obedecer e o nascimento de uma personalidade própria, despontando na pele da encantadora Tessa Thompson como reflexo da complexidade do espírito humano que tenta emular. O mesmo pode ser dito sobre os inéditos Caleb e Serac, figuras opostas, respectivamente sustentadas pela capacidade de escolher em um sistema não opressor e pela garantia do controle exacerbado através de conhecimentos sobre o futuro, e cujo estrondoso encontro é antecipado de forma gradual e sempre preservando a ansiedade do espectador. Não suficiente, deve-se também apontar a forte presença de Evan Rachel Wood, atriz que consegue manter a complexidade de sua protagonista, enganando o espectador com uma desafiadora sabedoria e motivações ambíguas.

Nem todos os frutos da facilitação narrativa são positivos, entretanto, opção que acaba por significar explicações extremamente expositivas e um ritmo por vezes problemático. É o que se evidencia por exemplo, em Genre, episódio que recheia um único avanço da trama com espalhafatosas sequências de ação – passagens elevadas por boas escolhas musicais mas que apenas esticam a duração, oferecendo uma diversão superficial – e é reforçado no penúltimo e pior capítulo da temporada, que dedicado a explorar as origens de determinado personagem acaba escolhendo uma atrapalhada edição que apenas adia certas revelações, tentando aumentar, sem sucesso, o impacto de surpresas fáceis de se prever. Como se não bastasse, o maior problema da adoção de um caminho mais simples acaba sendo a forma como ele afeta alguns rostos queridos pelos fãs, reduzindo alguns a meros artifícios de roteiro e se esquecendo totalmente de outros. Em relação ao primeiro erro podemos apontar a infelicidade cometida contra Maeve, figura que apesar de resgatar com coesão seu final deixado em 2018 – além de render alguns momentos marcantes, como aqueles vivenciados em War World – tem aqui suas motivações e amadurecimento retardados em nome das oito horas de tela. Caminhando para uma óbvia conclusão, a personagem é mantida ao lado de Serac por mais tempo que o necessário, sendo ela a única justificativa para que o mesmo consiga equiparar suas habilidades a de Dolores, involução distante da mulher que há muito aprendera a não se submeter a ninguém.

Em relação ao segundo desvio, quem mais se destaca é Bernard Lowe (Jeffrey Wright), personagem fundamental que é jogado para escanteio. Embora o desfecho deixe claro que sua presença será bastante importante no futuro, aqui ela é praticamente insignificante, representando um arco que apesar de passagens comoventes, pouco aprofunda seu complexo caráter (e que a produção sempre soube utilizar com destreza) e reflete com intensidade o mal-planejamento por parte dos produtores na justificativa de uma nova temporada – de modo que a falta de função para certos coadjuvantes revela não só que talvez alguns deles não devessem estar ali, mas também que o formato de um único longa poderia substituir tranquilamente o terceiro ano. Por fim, basta mencionar o contraditório tratamento concedido ao enigmático Homem de Preto (o magistral Ed Harris), figura cuja evolução não carece de sentido mas é executada com extrema rapidez (como demonstra a breve resolução de um trauma em um único diálogo), levando a uma ousada conclusão que mesmo satisfatória deixa a impressão de que sua montagem poderia ter sido melhor.

Mantendo com decência as interessantes discussões filosóficas que consagraram a atração, a terceira temporada de “Westworld” cumpre a sua função e consegue entreter com a criação de ótimos visuais e sequências de ação, concedendo uma diversão mais descompromissada mas que não desrespeita os fãs. Dividida entre o desenvolvimento entre ótimos arcos e o descuido com certas figuras – apesar das trajetórias coesas e, com algumas exceções, não necessariamente ruins – a série consegue se manter interessante mas reforça um lento declínio que vem se apresentando desde 2018, distante do brilho de sua magistral estreia. Com o estabelecimento de ganchos curiosos, porém, não há como dizer que inexiste ansiedade para as possibilidades que podem ser exploradas.  Tal impressão, no entanto, não é inédita, sendo a mesma dedicada, no passado, a um ano que se mostrou mais conciso porém consideravelmente atrapalhado. A saída é torcer para que a série se reencontre antes que se perca de vez no panteão de obras eficientes mas que se afastam de seu verdadeiro potencial.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

Compartilhe