Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de maio de 2020

Homeland (2011-2020): não há limites para Carrie Mathison

Série se encerra depois de oito temporadas, e depois de tantos altos e baixos, encontra sua essência novamente na força de Carrie Mathison, papel que ficará marcado como um dos melhores da carreira de Claire Danes.

Em 2 de outubro de 2011, o primeiro episódio de “Homeland” era exibido no canal americano Showtime. A série, desenvolvida por Alex Gansa e Howard Gordon, foi baseada na produção israelense “Prisoners of Wars” que, com duas temporadas, teve os direitos adquiridos pela Fox Television para que a versão americana fosse produzida. Assim, conhecemos Carrie Mathison (Claire Danes), uma agente da Central de Inteligência Americana (CIA) que tem de retornar à base depois de descobrir um segredo importante de uma de suas fontes: “Um prisioneiro de guerra americano mudou de lado”. Ao mesmo tempo, o sargento Nicholas Brody (Damian Lewis) é encontrado e resgatado depois de oito anos preso em um cativeiro da Al-Qaeda. Seria ele o traidor?

O prisioneiro de guerra e a defensora da nação

Talvez não seja a melhor forma de encorajar o público a ver o restante da série, mas é justo dizer que a primeira temporada de “Homeland” é a melhor. Uma história com narrativa bem estruturada, cheia de tensão, e atuações impactantes. A série nunca conseguiria atingir a mesma qualidade novamente, não por falta de tentativas, mas simplesmente porque seu melhor arco foi o de estreia. Carrie é apresentada como uma agente motivada, guiada por seu mentor Saul Berenson (Mandy Patinkin), mas que age por conta própria na maior parte do tempo.

A informação de que um prisioneiro de guerra americano agora está do lado da Al-Qaeda é exatamente o que ela precisa para criar sua própria investigação. Sua suspeita em relação a Brody não é compartilhada por mais ninguém, visto que o sargento é tratado como um herói de guerra. Nem mesmo Saul acha que ela pode ter razão. Mas para Mathison, eles deixaram passar algo antes, e assim o 11 de setembro aconteceu. Ela não permitirá que a nação sofra um novo ataque, e portanto, fará o que for preciso para impedir o traidor.

Existe, no entanto, um pequeno detalhe. Carrie sofre de Transtorno Bipolar, condição que ela esconde da CIA, e que, se não tratada, coloca a protagonista em uma espiral de insanidade. Ferramenta perfeita para quem precisa desacreditá-la e colocar em questão toda sua investigação. Inicia-se então um jogo de gato e rato. Depois de várias de suas táticas falharem, Carrie decide seduzir Brody em prol de seu objetivo, uma prática comum para a espiã. Enquanto isso, Brody, que tem de lidar com as mudanças de uma vida doméstica depois de oito anos longe de casa, não consegue olhar para a esposa como antes, e acaba caindo na armadilha de Mathison. Inicia-se então um romance doentio, que viria marcar a vida de Carrie para sempre, e que acabaria sendo, ao mesmo tempo, a salvação e perdição de Brody.

As consequências da traição

A primeira temporada de “Homeland” apresenta um arco excelente, muito bem desenvolvido também ao longo do segundo ano. Ambas são quase unanimidades quanto à qualidade, e foram classificadas como algumas das melhores produções de seus respectivos anos. A primeira temporada foi vencedora de seis prêmios Emmy, incluindo Melhor Série de Drama, e tanto a primeira quanto a segunda foram vencedoras do Globo de Ouro de Melhor Série – Drama. Mas a situação começaria a mudar a partir da terceira temporada…

O terceiro ano da série não parece ter nada de impactante além de seu final. O arco de Brody foi estendido por mais tempo do que devia, e o personagem, assim como o próprio homem, é apenas uma sombra do que uma vez foi. Carrie, embora aparentemente central para a trama, é muitas vezes deixada de lado, e é forçado ao público uma história secundária sobre Dana, filha de Brody, que nunca foi necessária ou requisitada. É tentando se agarrar à missão de Mathison que ainda conseguimos tirar proveito da temporada. Mas de fato, sua conclusão é como um soco no estômago. Um soco que você pôde ver chegando há muito, e até teve tempo de se preparar para o impacto, mas o esforço foi em vão. O peso foi sentido. E apesar de todos os erros e ações moralmente dúbias, aquela estrela desenhada por Carrie ainda dói.

Mas entre todo o caos, um pouco de ordem surgiu, ironicamente na forma de Peter Quinn (Rupert Friend). Introduzido na segunda temporada, o agente de operações especiais da CIA viria a se tornar um dos amigos mais leais de Carrie, e alguém que tentaria salvá-la de si mesma. Mal sabia ele quão alto seria o preço a pagar por isso.

A rainha dos drones não conhece limites

Em sua quarta temporada, “Homeland” teve os ares renovados, como um novo início. Agora chefe de estação da CIA em Cabul, Carrie está em um ótimo momento de sua carreira. Porém, ao se ver frente a frente à possibilidade de matar o terrorista Haissam Haqqani (Numan Acar) por meio de um ataque de drone, a agente toma uma decisão que custa a vida de dezenas de inocentes, causando um conflito interno na personagem. Vale tudo na caçada aos terroristas? Vidas americanas valem mais do que a de outros? Quão longe é longe demais?

Já conhecemos a determinação de Carrie desde o início da série, mas agora vencer parece ser a única opção. Ao longo da temporada ela manipula amigos para que eles a ajudem, influencia um jovem inocente a lhe dar a informação necessária para encontrar Haqqani, e, a fim de destruir o terrorista de uma vez por todas, ela quase sacrifica aquela que talvez seja a pessoa mais importante de sua vida. “Não há limites, Carrie?”, pergunta Quinn em certo momento da temporada. Não há. Carrie acaba repensando suas atitudes e mudando de postura ao fim do quarto ano da série, mas o que suas aventuras posteriores viriam a mostrar é que não há limites quando a segurança da nação está em risco. Ao menos é o que a agente diz a si mesma.

A quarta temporada de “Homeland” traz a tensão pela qual a primeira temporada ficou tão conhecida, embora de forma um tanto diferente. Com um pouco mais de ação, ainda assim a produção não deixa de lado sua complexidade narrativa e relevância temática que marca cada ano. 13 Hours in Islamabad é um dos melhores episódios de toda a série, e Long Time Coming faz o público encarar a falsa esperança de felicidade. Tudo que poderia ter sido…

Quando a protagonista mantém relevância à força

Para ser breve, a quinta e a sexta temporadas são o fundo do poço de “Homeland”. Carrie surge dois anos depois dos eventos do quarto ano, não mais como uma agente da CIA, mas como chefe de segurança de uma organização privada. A protagonista, assim, foi afastada narrativamente dos acontecimentos centrais da série, o que não é nada conveniente e acaba gerando conexões forçadas entre os diferentes núcleos. Ao mesmo tempo, Peter Quinn, que pouco a pouco se desenvolvia como personagem e ganhava o apreço dos fãs, vai se tornando o ponto central da temporada. Isso leva a um final que coloca Carrie como a heroína em uma situação que ela nem devia estar envolvida, e uma armadilha narrativa para ela e Quinn. O destino reservado aos dois pode ter funcionado à época, mas com a sexta temporada, a beleza melancólica que poderia ser tirada da conclusão do quinto ano perde todo o peso.

Em 2017, “Homeland” entregou uma temporada tão ruim que até uma parcela dos fãs criou um movimento de revolta chamado #NotOurHomeland, protestando contra decisões vistas como traição à essência da série. As reclamações principais eram sobre o tratamento dado a Peter Quinn e o abandono dos roteiristas em relação ao desenvolvimento de Carrie como personagem. Agora envolvida no mundo da política, a ex-agente da CIA continua se colocando em situações impossíveis por ser “o único jeito” de impedir a ameaça da vez. Carrie sempre paga o preço necessário para que isso aconteça, mas o preço imposto pela sexta temporada foi mais difícil de lidar pelos fãs do que pela própria protagonista, talvez o maior erro da série em todo seu tempo de exibição.

A missão final

“Homeland” sempre se mostrou relevante nos temas que decidia abordar. Os produtores, roteiristas e elenco principal participavam do chamado “acampamento de espiões” antes do início de cada temporada, momento em que se reuniam com ex-agentes de inteligência para avaliar qual assunto contemporâneo no mundo das relações internacionais valeria a pena ser abordado. Nisso a série sempre acertou, mesmo quando errava com os arcos falhos de seus personagens. E foi na sétima temporada que ela se encontrou novamente.

O tema da vez é a influência da Rússia no governo dos Estados Unidos, junto à cultura da desinformação. “Mentiras, amplificadores, maldito Twitter”, como diz o título de um dos episódios. Carrie, agora desempregada, arranja um jeito de se envolver na conspiração da vez, mas isso deixa de ser um problema pois a Carrie que conhecíamos está de volta. Seus conflitos, sua doença, suas escolhas são todos fatores de relevância para o crescimento da personagem, e ela age com a convicção que sempre teve, mas finalmente sabendo entregar certa parte do controle. O episódio final da sétima temporada mostra perfeitamente quem Carrie é. Ele é dirigido magistralmente por Lesli Linka Glatter, diretora de vinte e cinco episódios da série, indicada ao Emmy por três deles, e responsável por alguns dos melhores capítulos de “Homeland”.

A oitava temporada, exibida dois anos depois da sétima, tinha o dever complicado de entregar uma história plausível e autossuficiente que ao mesmo tempo funcionasse como o encerramento da produção. Tarefa nada fácil, mas que entre altos e baixos, foi bem sucedida. O foco da temporada cai sobre Saul e Carrie. A relação entre mestre e aprendiz foi a única que sobreviveu por todos esses anos, e nada mais justo que o último suspiro de “Homeland” fosse dedicado aos dois. Com a sombra da intriga russa ainda pairando sobre a protagonista, Mathison tem de cumprir uma última missão, talvez a mais importante de todas, para impedir que uma catástrofe mundial aconteça. Desde sua saída da CIA, é difícil aceitar o envolvimento da personagem em situações tão mirabolantes, mas a essa altura é seguro assumir que mesmo que ela se tornasse uma professora do Ensino Fundamental, Carrie ainda seria a única capaz de salvar o mundo.

E quer saber? É verdade. Claire Danes foi a força motriz de “Homeland” por todos esses anos de exibição, e foi sua resiliência e vulnerabilidade ao interpretar Carrie que permitiu que a série chegasse tão longe. Apenas Claire Danes seria capaz de enfrentar e vencer o desafio que foi manter a série relevante em meio a tantas produções chamativas que a televisão tem proporcionado a cada ano. Com o último episódio intitulado Prisoners of Wars, como a produção israelense que começou isso tudo, a oitava temporada terminou, entregando uma tensão digna da primeira temporada. O encerramento da história de Carrie Mathison na verdade não foi um encerramento. Foi apenas o último capítulo que nós tivemos a chance de ver. Sua jornada continuará, enquanto existir um inimigo a ser vencido. Um final feliz e conclusivo não combinaria com a série. São erros demais, sacrifícios demais, não há espaço para felicidade. Mas há espaço para dever cumprido. E assim termina “Homeland”.

Louise Alves
@louisemtm

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