Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 03 de maio de 2020

#RapaduraRecomenda – Vida de Inseto (1998): a força da arte contra a tirania

Segundo filme da Pixar continua relevante ao reinventar temas de clássicos de Akira Kurosawa e de uma famosa fábula infantil com roteiro enxuto, personagens bem escritos, um cruel vilão e comédia pastelão de primeira.

É famosa a fábula “A Formiga e o Gafanhoto” (“A Formiga e a Cigarra”, em várias adaptações tupiniquins). Onde as formigas trabalham duro durante o verão para terem comida durante o inverno enquanto o gafanhoto apenas canta e se diverte, tendo que pedir ajuda para o formigueiro quando o frio chega porque passa fome. A moral reside em resistir à preguiça para que os objetivos sejam alcançados. Os roteiristas Joe Ranft e Andrew Stanton se inspiraram nesse conto para criar o segundo filme da Pixar, “Vida de Inseto”.

Stanton co-dirigiu o filme com John Lasseter, diretor criativo da Pixar na época, e a experiência levou o estreante a evoluir e se tornar um cineasta responsável por magníficas obras do estúdio, como “Procurando Nemo” e “WALL-E”.

Os roteiristas buscaram inspiração na fábula mencionada acima, mas com a adição de uma gangue de gafanhotos que, maiores e mais fortes do que as pequenas formigas, as intimidam e ameaçam para que juntem alimentos o suficiente para que eles não tenham que se preocupar. As formigas encaram a rotina pesada de juntar o dobro da comida para não serem mortas, trazendo um certo tom macabro que enriquece a obra.

Mas as inspirações não ficam por aí. Em 1954, Akira Kurosawa lançou seu clássico “Os Sete Samurais”, onde uma vila é repetidamente atacada e explorada por bandidos, levando um de seus moradores a viajar para contratar samurais para defender o local. Tal filme inspirou outro clássico, “Sete Homens e um Destino”, com trama similar, mas adaptada ao Velho-Oeste americano. Aqui, a formiga Flik (Dave Foley), praticamente a única a pensar fora da caixa para buscar soluções diferentes (e ridicularizado por isso), sai em busca de insetos guerreiros que consigam afugentar a gangue liderada pelo ameaçador Hopper (Kevin Spacey).

Hopper, aliás, é um grande acerto do roteiro. Um valentão sem alma, ele é cruel e desprovido de empatia e não traz traços leves ou divertidos em sua representação. Facilmente um dos maiores vilões da Pixar. Para ressaltar a ameaça dos gafanhotos, houve decisões criativas interessantes, como o contraste visual entre os mesmos e as formigas, estas redesenhadas para terem suas patas se passando por braços e pernas, tornando-as mais amigáveis a olhos humanos, ao passo que os bandidos possuem apêndices extras, deixando-os com um visual mais perigoso.

Apesar do tom sombrio de sua premissa, o longa é leve e aventuresco, com boas doses de comédia. Tal equilíbrio é representado na trilha sonora do inigualável Randy Newman, frequente colaborador do estúdio. O texto traz falas bem encaixadas, não só dando um foreshadowing simples, mas eficiente, como também ilustrando as diversas personalidades de seus personagens.

Flik é sonhador, mas suas tentativas de ajudar a comunidade com ideias disruptivas tendem a sair pela culatra. Apesar de tudo, sua inocência – e insistência – são inspiradoras e, aos poucos, conquistam o coração da Princesa Atta (Julia Louis-Dreyfus), esta sentindo o peso da responsabilidade da coroa que, um dia, terá que assumir. À dupla se soma o time de “insetos guerreiros” contratados no início… por engano! Após uma ótima cena fazendo alusões visuais à lenda de Excalibur e do Rei Arthur, uma trupe de artistas circenses é convocada devido a uma falha de comunicação engraçada e que faz a trama andar. Em busca de glória e reconhecimento por seus talentos, todos acabam tentando executar um último, desesperado e grandioso número, na esperança de que suas habilidades sejam o bastante para enganar Hopper e sua gangue e os assuste para sempre.

Daí facilmente nasce a desculpa para deliciosos momentos de comédia pastelão do melhor estilo, intercaladas com hilárias gags sobre insetos (a da luminária que eletrocuta os bichos é de rachar o bico) e até “erros de filmagem” nos créditos finais que deixam aquela sensação gostosa de que se passou por uma boa e agradável experiência.

“Vida de Inseto” pode ter sido apenas o segundo longa da Pixar, mas está longe de ser datado com suas lições de moral ainda relevantes, animação guerreira de uma tecnologia que evoluiu horrores décadas mais tarde e um inspirado time de atores e diretores que entrega um filme de alma leve bem conduzido e muito divertido.

Bruno Passos
@passosnerds

Compartilhe