Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de maio de 2020

#RapaduraRecomenda – O Segredo da Cabana (2011): divertida metalinguagem

Com menos créditos do que realmente merece, "O Segredo da Cabana" é um belo exemplar de união entre terror e comédia que diverte e ainda comenta como é o cinema.

Ismail Xavier, um dos maiores pesquisadores brasileiros de cinema, escreveu um livro chamado “O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência”.  Nele, o autor compara algumas abordagens na sétima arte que buscam criar um efeito de realismo como se o filme fosse uma janela para a realidade (transparência) e outras que ressaltam a mão dos realizadores em uma narrativa que não se pretende ser o real, mas uma versão pessoal do contador da história (opacidade). De modo surpreendente, “O Segredo da Cabana” usa as convenções do terror para comentar como o cinema é uma arte opaca construída pela intervenção do diretor e sua equipe.

A partir do roteiro e da direção de Drew Goddard (“Maus Momentos no Hotel Royale“), desenha-se uma trama em que os amigos Jules (Anna Hutchinson), Curt (Chris Hemsworth), Dana (Kristen Connolly), Holden (Jesse Williams) e Marty (Fran Kranz) viajam para uma cabana isolada no meio de uma floresta cercada por montanhas. Porém, o que deveria ser somente um fim de semana de diversão, acaba se transformando em um pesadelo sobrenatural.

A sequência de abertura demonstra que as interferências na confecção de um filme começam cedo para imprimir o tom geral: os créditos iniciais e as primeiras cenas alternam entre o mistério e a comédia, deixando lacunas propositais sobre o sentido do que estamos assistindo. Imagens de sacrifícios ritualísticos banhadas por um fotografia de forte vermelho criam o suspense; um corte seco e contrastante nos leva para uma máquina de escritório onde se lê “Quer um café bem quentinho?” e para uma conversa entre os funcionários Sitterson (Richard Jenkins) e Hadley (Bradley Whitford) sobre o casamento de um deles e o trabalho que precisarão fazer, um início que constrói a comédia pelo inesperado. O ruído repentino do título chegando à tela com letras vermelhas relembra que sensações distintas irão se misturar pela próxima uma hora e meia.

Quando a narrativa retorna, é possível notar uma atmosfera descontraída na apresentação e interação do grupo de amigos. Esse humor é pontualmente interrompido por momentos de suspense desde a saída para a viagem, como na aparição de um homem no alto do prédio onde estavam enquanto se comunica com alguém por um aparelho eletrônico e o contato com uma pessoa estranha e ameaçadora num posto de gasolina abandonado. Na noite que passam na cabana, a mesma atmosfera se faz presente após a descoberta de um porão que abriga objetos incomuns e obscuros. Em cada uma dessas ocasiões, o mistério é estabelecido tanto pelos acontecimentos da trama e pelas figuras que atravessam o caminho dos protagonistas, quanto pela chegada de uma trilha sonora com acordes enigmáticos – um exemplo de intervenção do diretor para criar repentinamente uma ambientação de perigo.

Assim como a abertura já havia sugerido, o suspense é constantemente entrelaçado com a comédia também no desenvolvimento do segundo ato. Ao chegarem ao local isolado e ficarem sob o risco do sobrenatural, o roteiro abraça a paródia e trabalha a metalinguagem para ironizar os clichês do subgênero de filme de cabana no cinema de terror: debocha dos estereótipos em grupos de jovens para caracterizar seus perfis; critica o moralismo de punir as ações da juventude, como o sexo; e ridiculariza decisões estúpidas tomadas diante de uma ameaça, como se separar ao invés de manter todos juntos no mesmo lugar. Com o avanço do humor pela história, fica claro o papel do escritório onde Sitterson, Hadley e demais empregados trabalham, bem como outras piadas que são feitas ao se alternar entre um cenário a outro pela montagem – contrastes são criados pela sobreposição de imagens durante cenas de sexo e de grande violência e pela sucessão de planos com situações semelhantes nos dois núcleos.

A atuação dos funcionários igualmente ilustra a metalinguagem trazida por Drew Goddard. Cada escolha e ação feita por eles interfere no andamento da trama e nos comportamentos dos personagens (apesar do discurso de que os jovens seriam livres para decidir dentro de um cenário de possibilidades programadas), remetendo assim aos próprios realizadores cinematográficos que, conscientemente, afetam a narrativa. Além da combinação de sensações (suspense e comédia) e da manipulação de emoções pela trilha sonora e pela montagem, as intervenções externas alteram o estilo do terror mais sugestivo para o horror explícito e gore. Não sendo apelativas porque se justificam na proposta dramática fantasiosa, as passagens de violência gráfica assinalam também como o filme consegue imprimir tensão e apresentar perigos realmente contundentes. Sem deixar de lado, claro, o efeito agressivo que esse subgênero possui com ataques e mortes chocantes.

As variadas decisões não apenas se encontram e se sucedem para formar um todo coeso, como também definem uma proposta de entretenimento. A articulação entre terror e comédia é coerente porque segue uma lógica própria na qual até o aumento da escala da ameaça e suas consequências tem seus exageros justificados. Assim, o terceiro ato eleva a diversão a ponto de tornar o absurdo das revelações um passatempo extra. A lógica é parodiar pela metalinguagem as convenções do gênero, na linha do que “Pânico” iniciou nos anos 1990, e mostrar que toda escolha de um filme é o resultado das intervenções do diretor para atingir algum objetivo. No caso de “O Segredo da Cabana”, é divertir o público.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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