Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 27 de abril de 2020

Emma (2020): a genuinidade das relações humanas

Liderado por mais uma vibrante atuação de Anya Taylor-Joy, "Emma" usufrui com sucesso da essência de seu material fonte para produzir uma necessária reflexão sobre a importância do genuíno no relacionamento com o outro.

Nascida em 1775 na cidade de Steventon, a escritora Jane Austen exibiu desde cedo grandes habilidades na área da escrita. Extremamente observadora, a autora se especializou na exploração dos conflitos desenvolvidos entre classe e gênero, utilizando o que tanto presenciava em seu cotidiano para produzir verdadeiros clássicos, como o inesquecível “Orgulho e Preconceito“. Hábil no desenvolvimento de marcantes personagens, consolidou sua assinatura a partir de uma sutil ironia sempre presente em suas páginas, injetando assim doses de modernidade na literatura inglesa através de um estilo crítico e bem-humorado. Dessa forma, ao priorizar o uso dessa mistura entre drama e sarcasmo na construção de figuras femininas, ela criou um forte elenco de mulheres ficcionais, personalidades entre as quais podemos destacar a irreverente “Emma” Woodhouse, recentemente presenteada com uma nova adaptação cinematográfica.

Membro de uma nobre família rica, a jovem Emma (Anya Taylor-Joy) passa os seus pacatos dias auxiliando seu pai (o divertido Bill Nighy) na recepção de famílias menos abastadas e participando de importantes cerimônias envolvendo seu círculo social. Nas horas vagas, seu passatempo favorito é ajudar aqueles com quem se importa na formação de casais, profundamente dedicada ao cultivo de relacionamentos enquanto mantém a recusa em se tornar uma mulher casada. Quando se vê envolvida em uma complicada intriga amorosa, entretanto, ela passa a questionar diversos valores, forçada a tomar difíceis decisões em um complexo jogo entre paixão e amizade. Baseada nessa premissa da romancista britânica, tem-se assim uma agradável obra que consegue extrair a pureza de suas personagens e cativar com a simpática trajetória desses mesmos.

Dirigido pela estreante em longa-metragem Autumn de Wilde, o filme reconhece a “simplicidade” da narrativa a sua disposição para construir uma experiência mais intimista, priorizando o satisfatório aprofundamento das figuras centrais e, principalmente, dos laços que elas estabelecem entre si. Dessa forma, cria-se uma cativante experiência bastante sustentada pela descrição psicológica daqueles presentes em tela, destacando-se a forma como a diretora envolve o público ao convidá-lo a tentar decifrar as verdadeiras intenções que movimentam cada um deles. Utilizando com muito primor das aparências tipicamente cultivadas pela nobreza da época – período em que era fundamental a manutenção dos comportamentos impostos à figuras como a da protagonista -, ela desafia os espectadores a enxergar além das gentilezas superficiais, traduzindo assim com leveza a forma registrada de Austen em criticar o modo de vida da época. Tais elogios também se destinam à eficiente Eleanor Catton, roteirista que logo em seu primeiro trabalho soube explorar o equilíbrio entre um adocicado romance e a comédia, inserindo alívios cômicos – com realce para os encontros entre Emma e a mãe de uma “inimiga”, excelente demonstração da perda de autenticidade perante a compaixão fingida -, que engrandecem a produção.

É claro que nada disso seria possível sem um afiado elenco, este que se encontra encabeçado pela grandiosa atuação de Anya Taylor-Joy. Muito lembrada por papéis mais carregados (entre os quais pode-se citar sua excelente performance em “A Bruxa“), é gratificante presenciar a atriz argentina em uma personagem mais contida, dominando com maestria as múltiplas faces que a principal simula para esconder seus verdadeiros desejos. Isso não implica, todavia, que ela abra mão de uma forte presença, encantando com um falar perfeitamente sarcástico e pontuando alguns dos momentos mais engraçados do longa. São nas interações com Mia Goth, intérprete da fofa Harriet Smith, entretanto, que se encontram suas mais brilhantes passagens, algo justificado pela incrível química demonstrada entre as duas atrizes. Indo da amizade arranjada à genuinidade, a dupla arquiteta uma comovente transformação no relacionamento entre duas pessoas socialmente distintas, extraindo de uma amizade inicialmente baseada no contraste entre a ironia de Emma e a ingenuidade da humilde coadjuvante um dos laços mais genuínos do filme. Não suficiente, vale mencionar também o marcante trabalho de Johnny Flynn, ator que incorpora com sucesso as ações cuidadosas de seu personagem, um homem justo porém profundamente limitado pelas regras impostas a ele, e vai assim ao perfeito encontro com a protagonista, interação conflitante que acaba por evoluir de forma bastante comovente.

Extremamente elegantes, são igualmente dignos de elogios os diferentes aspectos da direção artística que envolve o projeto como um todo, elevando-o através de primores visuais pela combinação entre a vibrante fotografia de Christopher Blauvelt e os coloridos figurinos – os quais, historicamente precisos, reforçam a ótima recriação de época. Por fim, é uma infelicidade que, mesmo longe de ser frágil, a simples premissa que sustenta a trama implique um ritmo por vezes vagaroso em seu andamento, comprometendo a ligação com o espectador em algumas passagens e soando repetitivo em certos momentos, estendendo-se em uma única e predominante temática.

Sabendo enxergar além das meras aparências, todavia, é possível encontrar em “Emma” uma bonita obra sobre a sinceridade dos relacionamentos humanos. Conduzido pela magnética atuação de Anya Taylor-Joy e pela naturalidade que a atriz estabelece com os demais integrantes do elenco, o longa magistralmente produzido preserva a essência da grande Jane Austen e se distancia do romantismo barato através de relações genuínas e arcos amorosos muito bem resolvidos. Sabendo utilizar com precisão da “comédia de costumes” encontrada no material fonte, o filme é um ótimo exercício sobre a importância de se retirar as máscaras sociais que utilizamos em nome do florescimento de laços verdadeiros de humanidade, estes que podem se provar eficientes caminhos para a felicidade e o amor.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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