Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de abril de 2020

#RapaduraRecomenda – O Enigma de Outro Mundo (1982): essencialmente John Carpenter

John Carpenter entrega um dos seus filmes mais emblemáticos com uma inteligente construção, não apenas de direção, mas de fotografia, trilha sonora e efeitos especiais. O resultado é uma das obras que melhor define o estilo de um dos diretores mais criativos do cinema de baixo orçamento.

Ficção científica e terror são dois gêneros que caminham juntos há muito tempo. No cinema, o casamento se formou em 1978 com “Invasores de Corpos” para se consolidar no ano seguinte com “Alien, o Oitavo Passageiro”. A ideia de usar o desconhecido (ou inexplorado) como um elemento para causar medo se tornou mais frequente nas obras de ficção científica desde então. E John Carpenter, um mestre em ambas as estéticas, não tardou para lançar “O Enigma de Outro Mundo”.

Remake de “O Monstro do Ártico”, de 1951, o filme acompanha um grupo de doze homens na remota Estação 4 do Instituto Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Após derrubarem um helicóptero de origem norueguesa que estava tentando matar um cachorro, o piloto J.R MacReady (Kurt Russell) se oferece para viajar até a outra base e tentar descobrir o que estava acontecendo. Ao chegar no local, ele percebe que um alienígena capaz de se transformar em uma cópia exata das suas vítimas está entre eles e todos podem ser uma possível ameaça.

Na sua essência, o filme é um amálgama de “Invasores de Corpos” e “Alien, o Oitavo Passageiro”. Do primeiro temos uma raça alienígena capaz de assumir a forma do seu hospedeiro, criando um sentimento de desconfiança geral. Do outro vem o ambiente claustrofóbico, além da própria natureza predatória da criatura. O resultado é um trabalho que não esconde as influências, ao passo que possui a originalidade típica que Carpenter demonstraria cada vez mais em seus projetos futuros.

Aliado a isso, o diretor contou com uma competente equipe que ajudou a criar todo o cenário de suspense que o filme carrega desde o início. A começar pela trilha sonora de Ennio Morricone, que abre o filme apresentando o tom da história. A batida dos sintetizadores, que logo se mistura com o barulho do helicóptero, ajuda a causar uma sensação de estranheza. Quando o público se dá conta do que o atirador tem em sua mira, o clima apresentado não é de ação, mas sim de que algo está errado. Essa união entre som diegético e não diegético, se estende por todo a narrativa, mantendo a tensão sempre alta.

Tal ambientação se reforça com o desempenho cuidadoso de Dean Cundey. Diretor de fotografia conhecido do cineasta — eles já haviam trabalhado juntos em “Fuga de Nova York”, “A Bruma Assassina” e “Halloween” — é ele quem transforma a base de pesquisa em um ambiente apertado e claustrofóbico. Os corredores se estreitam com os ângulos de câmera, sendo que próximo ao último ato parecem cada vez mais com um labirinto. Além disso, os planos fechados ajudam a criar a sensação de que o perigo pode estar em qualquer lugar. Mesmo com os cantos escuros aparecendo continuamente, Cundey não esconde o ser, mostrando o quão horrível é a ameaça.

E é justamente a criatura que segura a tensão visual do longa. Criação do então novato Rob Bottin, o monstro é a essência do terror indescritível de H.P. Lovecraft, que combina com a estética do filme. A cena em que um dos membros da equipe é sugado pela barriga de um companheiro contaminado colocou o nome de Bottin no círculo de astros dos efeitos especiais — nos anos seguintes ele iniciaria uma parceria com Paul Verhoeven e seria o responsável pela maquiagem de “Seven: Os Sete Crimes Capitais”. Aqui, ele consegue sintetizar o mal como algo que não pode ser definido e ajuda no sentimento contínuo de delírio das personagens.

Vale destacar que, embora tenha um motivo justificado, nenhum dos pesquisadores possui mais que uma linha de desenvolvimento. Na prática, apenas MacReady tem seu perfil apresentado, logo no início, como um homem que bebe constantemente, mal-humorado e que resolve os problemas sem muita enrolação. O objetivo do roteirista Bill Lancaster (“Garotos em Ponto de Bala”) era trabalhar o caos — ele não perde tempo na construção do conflito, que começa a afetar a todos com pouco minutos de produção — e trazer um mínimo de profundidade enquanto a trama avança. Se funciona por um lado, isso também faz com que nenhuma das mortes — exceto pela do cachorro — tenha alguma importância mais significativa.

“O Enigma de Outro Mundo” pode não ser o filme definitivo de John Carpenter, mas é o que mais sintetiza tudo o que ele gosta de colocar nas suas obras. O perfeito casamento entre trilha sonora e fotografia, a trama de uma ameaça que persegue as personagens e um conflito entre caça e caçador são apresentados de modo orgânico. O final ambíguo, outra marca do cineasta, também está presente. E aqui, com um especial toque de ironia, que conclui sem precisar encerrar.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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