Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 29 de abril de 2020

Zombi Child (2019): estilo, mistério e vodu

Drama de maturidade francês aborda a cultura haitiana e suas tradições religiosas de maneira atípica, lidando com o exotismo sem reduzí-lo.

Zombi Child” é uma obra rara pelo seu tema. Não se trata de zumbis comedores de carne – pelo menos não na forma clássica dos filmes de terror. Através de uma misteriosa e atmosférica narrativa, essa produção traz como assunto alguns marcantes aspectos da história e da cultura haitiana, além de um pouco de sua relação com a França, seu antigo país colonizador. Fala-se de rituais vodu e de possessões com interesse e uma certa romantização, não como fetiches e alegorias bizarras para gerar medo pelo desconhecido, mas instigando a curiosidade do público por seus personagens.

A trama segue duas linhas temporais: uma a partir de 1962, no Haiti, e outra na França de hoje. A primeira gira em torno de estranhos acontecimentos envolvendo um homem escravizado, agindo como um animal lento e desorientado, num canavial da ilha caribenha. Já na Europa contemporânea, a imigrante haitiana Mélissa (Wislanda Louimat) é acolhida por um grupo de garotas. Elas estudam num colégio especial para meninas descendentes de pessoas que receberam honrarias francesas. Lá formam uma espécie de irmandade, enquanto cada uma passa por questões ora frívolas ora existenciais da adolescência.

As características estilísticas da produção, no entanto, chamam mais atenção do que o enredo que pretende contar. O ritmo peculiar imposto pela câmera minimalista permeia ambos os momentos, traçando um elo claro, porém invisível, entre as figuras do passado e do presente. O ar sobrenatural também é construído por uma trilha incidental e, principalmente, pela atuação do elenco. Existe algo sombrio na apatia sem razão apresentada pelas personagens, o que reforça a inquietação perante o mistério. Porém, sem uma pergunta clara para ser respondida a não ser “para onde vai o roteiro?”, tal mistério se resume à intrigante necessidade de encontrar explicação para as ações daqueles indivíduos. As adolescentes acabam sem profundidade no desenvolvimento e isso compromete a dinâmica do drama de maturidade.

Como fator positivo, o grande mérito do filme está na construção dessa atmosfera, que rompe o audiovisual e está presente também na execução dos “diálogos” do roteiro. Com frequência as conversas são mostradas “pela metade”, somente a partir da perspectiva de um personagem. Não haveria dificuldade alguma para o diretor e roteirista, Bertrand Bonello (“Nocturama“), incluir a outra “metade” na cena, já que os atores estão disponíveis e poderiam aparecer ou falar. Entretanto, é inegável que a escolha narrativa aprofunda o sentimento do desconhecido e convida o público para um mergulho maior nas mentes ali retratadas. Por outro lado, tal decisão aliena espectadores que podem estar em busca de respostas prontas e querem apenas uma trama fácil de consumir.

É bastante curioso e de grande interesse cinéfilo que esse subgênero estilizado, dramático e sobrenatural fale tanto de uma cultura vigente e tenha uma voz autoral igualmente encontrada em outras obras contemporâneas sobre maturidade pelo mundo, como no cult independente americano “The Fits” e no brasileiro “Mate-me Por Favor“. Em meio a narrativas com toques fantásticos, comentários sociais são tecidos. Aqui, sem obviedades e à medida que o filme se desenrola, os aspectos culturais do Haiti ficam mais evidentes. Por mais que haja misticismo e que esteja atrelado ao desconhecido, tratam-se de eventos históricos, de crenças e de pessoas reais. Por trás dos personagens e do clima de “Zombi Child”, há um retrato de um povo abundante em sua história, mas que poucas vezes é visto sem preconceitos no cinema.

William Sousa
@williamsousa

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