Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 30 de março de 2020

A Caçada (2020): pseudo-inteligência

Apesar de boas cenas de ação e de um agradável uso do nonsense, o filme é sabotado por personagens rasos e pela incapacidade de harmonizar a trama e interessantes observações sociais.

Ao acordar em uma floresta afastada, um grupo de adultos amordaçados começa a questionar quem os colocou ali. Reunidos em uma grande clareira, eles se deparam com uma caixa recheada de armamentos e em poucos segundos passam a ser brutalmente perseguidos. Inicia-se assim “A Caçada”, jogo doentio organizado por membros de uma elite que ganha vida em mais um thriller da Blumhouse. Responsável por projetos bastante inventivos e pelo estabelecimento de parcerias com alguns dos grandes nomes da atualidade – caso do oscarizado diretor de “Corra!“, Jordan Peele -, aqui a produtora não atinge esse mesmo patamar, entregando um trabalho que falha ao tentar ser mais inteligente do que realmente o é.

Dirigida por Craig Zobel (da série “The Leftovers“), seria injusto afirmar que a produção não possui nenhum mérito principalmente em seu segmento inicial. O cineasta entrega empolgantes sequências de ação, justificando desde os primeiros minutos a elevada classificação indicativa. Repletas de sanguinolência e trazendo absurdos que evocam a cafonice dos filmes B, essas passagens estabelecem a atmosfera nonsense tão presente na obra e convidam quem as assiste a embarcar em um cômico battle royale. Não suficiente, tais momentos ainda conseguem despistar o público ao desafiá-lo com a morte sequencial de alguns coadjuvantes, usando a enérgica montagem de Jane Rizzo para alternar entre vários deles e não se adiantar na revelação do protagonista. Portanto, tais cenas constroem um forte primeiro ato, injetando na plateia uma bem-vinda dose de adrenalina e a deixando ansiosa para presenciar o que vem em seguida.

À medida que esses recursos se tornam repetitivos e começam a diminuir gradativamente em criatividade, Zobel demonstra certa dificuldade na transmissão das mensagens do filme, incapaz de equilibrar apontamentos críticos com o andamento natural da trama. Dessa forma, o cineasta acaba por gerar um produto bastante segmentado, denunciando uma direção que, com exceção dos momentos de violência, não consegue ir além de caricaturas e “forçações de barra”. Em relação a esse significativo problema, entretanto, ele não é o único que deve ser responsabilizado. Roteirizada por Damon Lindelof e Nick Cuse (duas grandes mentes por trás da incrível série “Watchmen“), a narrativa tenta trabalhar uma alucinada batalha de “ricos contra pobres”, propondo que uma equipe de renomados empresários escolheu doze “participantes” que, segundo sua preconceituosa mentalidade, compactuam com pensamentos extremistas e ultrapassados (surgindo assim assuntos que vão desde o racismo ao porte de armas). Para tal, todavia, o roteiro (que é muito aquém da capacidade dessa dupla) utiliza abruptos comentários políticos que tornam a experiência extremamente expositiva e  que reafirma seu propósito a todo momento para se exibir como “relevante”.

Por conta disso, o discurso da obra se envereda por caminhos duvidosos – entre os quais podemos destacar a absurda forma de inserir a temática dos refugiados na trama –  que são liderados por figuras superficiais e que tem pouco a agregar. Apesar de ser até compreensível que participações como as de Emma Roberts e Justin Hartley sejam consideravelmente curtas (embora sejam exemplos de bons atores desperdiçados em tela), o problema na construção dos personagens realmente se revela quando percebemos a falta de personalidade da protagonista. Interpretada por Betty Gilpin – atriz cujo talento também é mal aproveitado -,  Crystal ou “Bola de Neve” (apelido que recebe em homenagem ao livro “A Revolução dos Bichos”, referência sagaz mas que também se converte em obviedade) é uma mulher que difere das demais cobaias do “experimento” por supostamente se afastar das ideologias arcaicas dos outros prisioneiros. Recebendo um mínimo background e responsável por diálogos sofríveis, ela não estimula o espectador a querer entender o que a faz especial, naufragando como alguém antipático que se resume a uma máquina mortífera na luta contra os antagonistas.

Por fim, deve-se apontar também o quão caricatos são estes últimos, vilões que possuíam algum potencial mas que ampliam as oportunidades perdidas pelo filme. Embora convençam no papel de “ricos hipócritas”, com direito a pelo menos uma engraçada cena sobre a falsidade que move poderosos a desempenhar causas nobres, suas motivações não são suficientemente exploradas. Essa decisão os subutiliza e acaba gerando imperdoáveis furos de roteiro. Não só indo na contramão da própria mensagem do longa – sendo que seria fundamental desconstruir caricaturas em um filme sobre os perigos do preconceito -, esse mal uso gera fortes interrogações, sendo difícil engolir a grande reviravolta apresentada quando a mesma depende tanto do esclarecimento do que movimenta os organizadores do “evento”.

Apesar de divertir com boas cenas de ação e alguns momentos verdadeiramente cômicos, “A Caçada” é um filme extremamente superficial que desperdiça com intensidade uma interessante discussão. Repleta de personagens vazios e sustentada por reviravoltas que fazem pouco sentido, a obra é um forte representante daqueles que tentam surfar na onda das “críticas sociais”, mas que termina sabotada por uma ambição que ultrapassa a sua própria inteligência. Desse modo, se torna esquecível em meio a um ramo permeado por projetos superiores.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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