Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 24 de março de 2020

Epidemia (1995): thriller contagiante

Em tempos de pandemia, esse drama eficiente e recheado de estrelas leva o espectador a uma angustiante corrida contra o tempo e contra as medidas inconsequentes de um Estado insensível e extremista.

Coronavírus. Quarentena. Contágio. Pandemia. Fique em casa.

Por hora, não há como fugir do triste cenário que atualmente obriga grande parte do planeta Terra a parar por tempo indeterminado. Parece coisa de cinema, até porque filmes que apresentam tragédias como essa não faltam. E na falta de salas de cinema, também fechadas pelo bem da população, uma porção de documentários, séries e longa-metragens começaram a pipocar nos serviços de streaming, aguçando o inerente flerte da humanidade com catástrofes (às vezes é estranho pensar que buscamos como forma de passatempo algo que justamente deveríamos esquecer). Destaca-se em meio a essa pandemia de produções sobre o tema, o filme “Epidemia” que pode ser visto na Netflix. Encabeçada por nomes de peso como Dustin Hoffman e Morgan Freeman, a narrativa se mostra relevante independentemente de nossa situação atual. Óbvio que conversar com o presente a eleva, mas o drama competente, empolgante e ágil – como a transmissão de um vírus – resulta num entretenimento contagioso.

Escrito por Laurence Dworet e Robert Roy Pool, o roteiro acompanha a incessante luta do Coronel Sam Daniels (Dustin Hoffman) e sua equipe de médicos do exército norte-americano para encontrar a cura para um vírus mortal trazido da África por um macaco, que se espalhou rapidamente por uma cidadezinha da Califórnia e colocou todos os seus habitantes em risco. Além de ter que lidar com os efeitos colaterais de algo altamente transmissível, que pode levar uma pessoa a morte em apenas três dias, a cidade de Cedar Creek entra na mira do General Donald McClintock (Donald Sutherland), que vê sua extinção como sendo o único meio de conter a doença e evitar que ela chegue a outros estados. Por mais que agora ressoe entre outros títulos, devido a um dos momentos mais angustiantes desde a peste espanhola em 1918, esse filme merece ser visto e revisto dadas a intensidade e humanidade com que seus personagens são apresentados e a envolvência com que a direção é realizada, cujo mérito é transportar o público para dentro de um profundo estado de calamidade.

O veterano diretor Wolfgang Petersen (“Das Boot“) utiliza seu know-how em thrillers para conceber uma narrativa, que mesmo longe de ser original, entrega uma experiência inquietante ao longo de pouco mais de duas horas e transita com extrema facilidade pelo horror, exibindo sem pudores fortes imagens dos contaminados pelo vírus; o drama que encontra em seus personagens uma fonte de energia para cativar e manter o espectador engajado; e a ação, ilustrada pelo sentido de urgência em encontrar um antídoto a fim de evitar a morte das pessoas ou pela figura insensível do General McClintock. Mesmo com tantos gêneros abordados, a condução do cineasta é esperta e se mantém firme e bem equilibrada, sem jamais perder seu ritmo e ainda ganhando uma aliada na montagem bem-sucedida que conta com editores experientes, como William Hoy (“Planeta dos Macacos“), Lynzee Klingman (“Um Estranho no Ninho“), Stephen Rivkin (“Avatar“) e Neil Travis (“Dança com Lobos“).

Dispondo de um elenco formidável, o longa – que passa distante de se aprofundar em seus personagens – não encontra problemas em fazer com que espectador mergulhe na história. Defendendo seu protagonista com estoicismo e o talento que lhe pertence, Dustin Hoffman transforma seu médico numa figura altamente confiável, determinada e comprometida com a missão de salvar o planeta, mesmo que para isso seja necessário se colocar frente a uma pessoa autoritária como o militar, vivido com vilania cartunesca pelo excelente Donald Sutherland. Este ganha a companhia de Morgan Freeman, que embora revele constantemente a obediência ao seu superior, nunca deixa de demonstrar o seu desconforto para com as absurdas decisões do mesmo. Complementando a equipe de médicos, temos o excelente Kevin Spacey, numa atuação mais comedida do que o habitual, Rene Russo que, sem tanto brilho, surge para catapultar as motivações de Sam Daniels e o então jovem Cuba Gooding Jr., cuja missão termina sendo desempenhar um papel digno como coadjuvante.

Contrapondo-se à eficiência mostrada até o seu terço final, “Epidemia” investe numa resolução fácil quando tudo parecia destinado ao fracasso na busca pela cura. Mais triste ainda é saber que a escolha pelo desfecho vem somente a partir do momento em que o protagonista é colocado na berlinda devido a questões particulares, de certa forma gerando um sentimento de frustração. No entanto, mesmo depois de jogar o público momentaneamente para fora da narrativa com suas seguidas coincidências, a trama reserva para seu gran finale aquilo que já era prometido desde sua primeira sequência. Além disso, a figura ameaçadora do vilão mais uma vez aparece para refletir as escolhas radicais de um Estado que prefere sacrificar a vida de uma cidade para garantir a sobrevivência de milhões. Montado com habilidade e partindo de uma premissa espetaculosa, o filme-desastre alia muito bem o entretenimento à tragédia, evoca urgência e consegue a proeza de continuar expressivo ainda que não estivéssemos testemunhando tamanha crise aqui fora.

Renato Caliman
@renato_caliman

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