Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 22 de maio de 2020

Honeyland (2019): um documentário-poesia

Obra de Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska é um documentário forte e poético sobre a vida da apicultora Hatidze Muratova e a relação que tem com sua mãe e seu trabalho.

A câmera sobrevoa uma espécie de estrada desértica e repleta de montanhas acinzentadas. De longe, no meio da paisagem vasta e vazia, avistamos uma pessoa andando. Quando a câmera se aproxima, percebemos que se trata de uma mulher carregando duas bolsas que parecem ser pesadas demais para serem carregadas por alguém de tão pouca estatura. Com um lenço na cabeça e vestindo uma blusa amarela e saia longa, ela parece uma versão moderna de uma trabalhadora da era medieval. São estas belas imagens que os diretores Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov escolhem para começar a contar a história de seu documentário, “Honeyland”.

A mulher que encontramos logo nos primeiros segundos do filme se chama Hatidze Muratova. Nascida em 1964, na Macedônia, Hatidze é uma apicultora que vive junto de sua mãe, Nazife, em uma vila praticamente desabitada. Além de mãe e filha, as duas têm uma relação de enfermeira e enfermo: Nazife, já em seus últimos anos de vida e extremamente doente, é cuidada todos os dias por Hatidze, que a alimenta, que a banha, que cuida do machucado em seu rosto e a ajuda em todas as suas necessidades. É uma relação extremamente íntima e profunda e que consegue ser perpassada perfeitamente pelas imagens feitas por Kotevska e Stefanov.

Entre essas imagens, uma delas se destaca mais, sendo uma síntese perfeita da ligação que as duas possuem: a câmera observa, de perto, Hatidze lavar os cabelos de sua mãe com uma bacia. Cada um de seus movimentos, desde a forma como ela despeja água na cabeça de Nazife, até o jeito que ela passa suas mãos pelo rosto e cabelo da mãe, até quando ela diz “você vai se sentir bonita depois disso”, é um lembrete de que o que vemos ali vai além de um vínculo maternal, é um vínculo de cumplicidade, é um vínculo entre duas pessoas que viveram em prol uma da outra, cuidando uma da outra. E as escolhas feitas pelos diretores para conseguir materializar esse vínculo em imagem foram certeiras. Ao não interferir nas conversas entre as duas e manter a câmera parada e centralizada, Kotevska e Stefanov transformam um momento tão simples e caseiro em uma pintura, em uma poesia.

Além da relação de Hatidze com sua mãe, o documentário também é sobre a relação que Hatidze tem com o lugar em que vive e com o trabalho que faz. Trabalho esse que se vê prejudicado quando Hussein Sam e sua família se mudam para a mesma vila e, assim como Hatidze, trabalham com apicultura. A princípio, a convivência entre eles é pacífica e até mesmo amigável, sendo mostrado, algumas vezes, as interações que tiveram, que costumavam ser tranquilas e alegres. Porém, isso muda quando Hussein passa a ameaçar a vida das abelhas ao não respeitar seu habitat e ao não deixar parte do mel que escolhe para elas, o que é essencial para sua sobrevivência e proliferação. Com isso, o documentário, sabiamente, passa a sempre associar a família à situações de grande brutalidade. Eles estão constantemente gritando e brigando um com o outro, e as cenas que mostram a agressividade com qual eles tratam seus animais são as mais fortes e chocantes do longa. Assim, ao mostrar esse outro lado da apicultura, o documentário se enche de uma realidade pesada, revoltante e necessária.

Depois de conseguir resumir três anos de filmagens em 89 minutos, Stefanov e Kotevska focam os últimos minutos do filme somente em Hatidze. Nós a assistimos, novamente com vestimentas carregadas e levando uma mochila nas costas, perambular pelas montanhas que circundam sua vila, com seu cachorro ao lado, em busca de colmeias de abelha para que possa extrair o mel. Quando consegue encontrar, seu primeiro ato é sentar-se com seu cachorro e dividir o pedaço de mel encontrado com o companheiro. Aqui, somos relembrados da bondade e solidariedade que Hatidze emana, e, quando “Honeyland”, em seus últimos segundos, exibe um encantador close do rosto extremamente vivido da apicultora, mostra o que o faz se ressaltar em meio à tantas outras obras que procuram contar histórias reais: sua capacidade de transformar acontecimentos do cotidiano, como a simples forma como Hatidze observa a paisagem ao seu redor, em algo de imensa beleza e intensidade.

Ana B. Barros
@rapadura

Compartilhe