Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 04 de julho de 2020

Três Verões (2019): retrato do Brasil atual

Transitando entre a comédia e o drama, longa da diretora Sandra Kogut oferece uma visão intimista sobre os atuais escândalos de corrupção no país e seu legado.

Diferentemente de tantas outras produções nacionais lançadas nos últimos anos, cujo objetivo é retratar os meandros da Operação Lavo Jato pelo ponto de vista dos principais envolvidos, a comédia dramática “Três Verões”, dirigida por Sandra Kogut (“Campo Grande”), opta por uma abordagem mais periférica. Ela explora o tema sob a ótica de uma humilde governanta que precisa lidar com as consequências advindas da prisão do patrão envolvido em esquemas de desvio de verba pública.

Como o título do filme sugere, a história se passa ao longo de três anos consecutivos com elipses temporais que saltam diretamente para as festas de fim de ano. Durante o verão de 2015, somos apresentados a Madá (Regina Casé), a carismática caseira da residência de praia do casal Edgar (Otávio Müller) e Marta (Gisele Fróes). Sempre bem-humorada, a empregada se esforça para atender aos inúmeros caprichos dos patrões: organiza a confraternização de Natal e Réveillon da família de ricaços enquanto suplica por um empréstimo para comprar um terreno a fim de abrir um quiosque na beira da estrada. Cheio de más intenções, Edgar concorda em lhe dar o dinheiro em troca de seu celular pré-pago.

No ano seguinte, a festa natalina é repentinamente cancelada, permitindo aos serviçais desfrutarem os quitutes que normalmente lhes são negados. Porém, a partir desse segmento, a trama se encarrega de apresentar seu verdadeiro conflito. Após retornar de sua caminhada matinal, Madá se depara com um grupo de policiais vasculhando a casa autorizados por um mandado de busca e apreensão. Ao ser levada para depor, a doméstica descobre que seus dados pessoais foram utilizados para encobrir os rastros de seu chefe corrupto recém preso. Agora, sem salário e com todos os bens confiscados, cabe a ela e aos demais empregados arrumarem uma meio de subsistência.

O roteiro de Kogut e da corroteirista Iana Cossoy Paro (“Eu Te Levo”) consegue alternar de maneira fluida entre o drama e o humor situacional, sendo capaz de tecer comentários mordazes a respeito das distinções entre as classes sociais no Brasil. Nesse sentido, é possível traçar um forte paralelo entre o subtexto do longa-metragem com a atual situação econômica do país. De maneira sutil, a narrativa sugere que, se por um lado as investigações criminais colocaram poderosos desonestos temporariamente atrás das grades, por outro geraram como consequência uma enorme onda de desemprego que levou grande parte da população a recorrer à informalidade dos serviços por aplicativo. Uma realidade retratada na trama.

Embora aparentemente bem intencionada, a direção impõe em certas sequências um ritmo demasiadamente mais lento e prolongado do que o necessário, tornando a experiência um tanto quanto enfadonha. Em determinado trecho no qual ocorre a gravação de um comercial, é possível constatar que um corte mais enxuto elevaria ainda mais a qualidade do material. Ainda nesse segmento, Regina Casé protagoniza um emocionante e recompensador monólogo, capaz de reconectar o público à obra e à sua mensagem. O veterano ator Rogério Fróes é outro destaque positivo do elenco, entregando uma performance sóbria e serena que serve como um bom contraponto a toda agitação da personagem de Regina Casé.

Bem mais do que uma simples obra de ficção, “Três Verões” é o retrato agridoce do atual cenário político e econômico no Brasil. Apesar do ritmo oscilante, aborda com primazia e leveza temas espinhosos como o contraste entre as classes sociais, a corrupção estrutural que mata o povo e corrói as engrenagens da máquina pública e o sonho médio de ascensão. Acima de tudo, trata a real essência de ser brasileiro: resistir às inúmeras adversidades que a vida oferece sem perder o sorriso no rosto.

Alan Fernandes
@alanfdes

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