Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 17 de março de 2020

O Jardim Secreto (1993): metáforas para o mundo [CLÁSSICO]

Com fotografia e direção afiadas, longa conta uma história sobre amadurecimento e superação perante as perigosas consequências da dor do luto e da depressão.

Algumas obras têm tamanho nível de fama e qualidade que recebem inúmeras adaptações cinematográficas ao longo dos anos. “Adoráveis Mulheres”, “Nasce uma Estrela” e várias versões sobre o mito de Tarzan agraciaram as telas da sétima arte desde sua origem. O livro escrito por Frances Hodgson Burnett segue o mesmo caminho, com filmes homônimos lançados, por exemplo, em 1919, 1949 e a versão de 1993 para “O Jardim Secreto”.

O longa foi dirigido pela polonesa Agnieszka Holland e marcou sua estreia em um grande estúdio, tendo a ampla audiência ocidental como público alvo. Após trabalhos com visões mais sombrias e melancólicas, como “Filhos da Guerra”, a diretora encarou o desafio de capitanear um projeto que representava uma brusca mudança do tom com o qual estava acostumada. Temos a história de Mary Lennox (Kate Maberly), uma garota de dez anos de idade que mora com os pais ingleses na Índia. Na primeira cena, por meio da narração da própria personagem, aprendemos que ela é ignorada por eles, o que resultou em uma intensa repressão emocional que a deixa incapaz de chorar. Seu relato é bruscamente interrompido por um terremoto que a deixa órfã.

Única sobrevivente, ela é enviada para morar com o tio Lord Archibald Craven (John Lynch) numa mansão isolada no interior da Inglaterra no início do século XX. O local parece estar sempre envolto em névoa, com os céus nublados cobrindo um casarão escuro e vazio e não há pessoas o suficiente para cuidar dali. Então, ela conhece a Sra. Medlock (Maggie Smith, impecável no papel), regente do lugar na ausência do dono. Rígida e dura, ela não demonstra nenhum apreço ou simpatia pela situação da menina e logo a avisa que o homem provavelmente não quer vê-la jamais.

A solidão de Mary é reforçada quando descobre que o parente viaja muito e mal passa tempo ali. Sem precisar de nenhuma explicação, a narrativa ilustra que ele é uma pessoa quebrada e desgostosa com a vida, seja por relances em que aparece em cena cabisbaixo e soturno, seja pelo estado de seu lar que reflete seu psicológico. A mãe de Mary era sua tia, esposa do proprietário da habitação, e veio a falecer uma década antes da chegada da menina. A imensa dor do luto ainda é sentida pelo tio, tomando conta do lugar.

Mimada, a protagonista não aprendeu nem mesmo a se vestir, o que não agrada em nada a severa governanta. Para contornar aquela condição, ela designa uma de suas funcionárias, Martha (Laura Crossley), para servir a recém-chegada. Não fica claro se ela o fez para que Mary aprendesse, aos poucos, a se virar na sua rotina básica, porque Martha é um poço de paciência e alegria que parece não ser atingida pelo bullying da jovem, ou se tudo foi apenas uma feliz coincidência. O fato é que se trata de um catalisador para o real início do arco narrativo da menina.

Com poucas opções de entretenimento, Mary começa a explorar a mansão, descobrindo passagens escondidas que a levam até o quarto da sua falecida tia, onde ela encontra uma chave. Durante seus passeios, ela escuta barulhos estranhos que a assustam e levantam a questão da residência ser mal-assombrada ou não. Um dia, ao brincar no vasto campo em frente à construção, ela faz amizade com Dickon (Andrew Knott), irmão de Martha que vive no local e “fala” com animais. Juntos, eles descobrem uma porta que leva a um jardim secreto, aberto pela tal chave de antes. A área está abandonada, com várias plantas mortas, fontes secas e ervas daninhas tomando conta – outro retrato do estado psicológico do tio, que ordenou que o local fosse trancado após, conforme Dickon revela, a esposa ter morrido ao dar a luz a seu filho que vive doente confinado à sua cama na mansão.

Em seus passeios, a personagem agora entende que os tais barulhos que ouvia nada mais eram do que os choros do primo, Colin (Heydon Prowse), e consegue encontrá-lo. Tendo vivido naquela cama por toda sua existência, o menino não sabe sequer andar. Os dois iniciam uma amizade e desafiam a criação mimada um do outro, o que acaba por amadurecê-los, mesmo que seja por meio de farpas e brigas.

Mary começa a cuidar do jardim com a ajuda de Dickon e do primo, após “roubá-lo” do quarto de onde não tinha permissão para sair. Aos poucos, os familiares se ajudam a encontrar a felicidade novamente e, conforme a área vai voltando à vida, eles também vão. É uma simples, mas eficiente metáfora visual que ilustra como a falta de cuidado e dedicação corretos faz com que tudo fique no esquecimento e na escuridão. A visão quase mágica da diretora confere ao ambiente um tom infantil sem deixá-lo bobo, enquanto as crianças agem como crianças encontrando paz na liberdade de agirem sem grilhões e podendo, enfim, brincar.

Com tudo isso, o longa consegue falar com crianças sobre aspectos da vida, como lidar com emoções de perda, encarar desafios em prol de seus objetivos, amadurecer sem extrema dependência de adultos e influenciar outros ao seu redor. Parecem temas profundos e, de fato, o são, porém o roteiro de Caroline Thompson acha um fantástico equilíbrio para que seja acessível a todos, sem menosprezar ou superestimar a capacidade dos pequenos de absorver e processar conceitos mais complexos.

A decisão de Agnieszka Holland de se aventurar numa obra com abordagem distinta da que costumava fazer se provou acertada, entregando um filme infantil cheio de poesia visual, sucesso de crítica e público. Com a fotografia do aclamado Roger Deakins, que magistralmente capturou os tons escuros para contrastá-los com os claros conforme o espaço (e todos à volta) ganhavam vida, “O Jardim Secreto” se prova capaz de ser visto por todos, principalmente quando se tem a idade dos protagonistas mirins.

Bruno Passos
@passosnerds

Compartilhe