Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 12 de março de 2020

Aprendiz de Espiã (2020): adorável clichê

Mesclando humor e ação, esta paródia aparentemente genérica surpreende positivamente devido ao bom entrosamento de sua dupla de protagonistas, além de ter algo minimamente relevante a dizer.

Em 1990, o então astro mor do cinema de ação, Arnold Schwarzenegger, surpreendeu a todos ao protagonizar “Um Tira no Jardim de Infância”, uma comédia familiar sobre um policial durão que para desvendar um caso se vê obrigado a tomar conta de crianças, gerando assim, um forte vínculo emocional com elas. Desde então, tal premissa vem sendo exaustivamente replicada, tornando-se praticamente um subgênero do humor. A exemplo disso, o novo filme do diretor Peter Segal (“Uma Nova Chance”), “Aprendiz de Espiã”, estrelado pelo ator e ex-lutador, Dave Bautista, segue à risca inúmeras convenções estabelecidas pelo clássico lançado trinta anos atrás.

Na trama, Bautista interpreta JJ, um nada discreto agente da CIA que após comprometer a operação em que estava infiltrado é enviado a contragosto em uma simples e monótona missão: vigiar Kate (Parisa Fitz-Henley), viúva de um terrorista, e sua filha de nove anos, Sophie (Chloe Coleman), contando com o suporte de sua nova e indesejada parceira, Bobbi (Kristen Schaal), uma nerd especialista em computadores que sempre o admirou. Porém, ao ser descoberto pela garota, o brutamontes é forçado a lhe conceder inúmeros favores em troca de seu sigilo.

Como de praxe em histórias de espionagem, o longa-metragem possui uma sequência inicial com uma boa dose de violência estilizada, com direito a cenas de lutas coreografadas e tiroteio em câmera lenta. No entanto, é justamente por usar os músculos ao invés do cérebro que JJ é avaliado pelo seu superior como inadequado para a função de espião, sendo designado para uma tarefa tida como inferior. Apresentado o conflito logo nos primeiros minutos, o roteiro de Erich Hoeber e Jon Hoeber (ambos de “Megatubarão”) nos revela a seguir seu maior trunfo, a interação entre o oficial e a carismática personagem de Coleman, uma garotinha inteligente e adorável que busca a aceitação de seus colegas de classe que constantemente caçoam dela  e a evitam. Como bônus, temos ainda as esquisitices da personagem de Schaal que apesar de subaproveitada consegue imprimir bem sua presença e timing cômico.

Embora recorra a uma fórmula padrão, a obra alcança seu ápice na construção da relação genuína de seus protagonistas, um complementando o outro. Além disso, suas motivações são claras o bastante para que sejam facilmente relacionáveis. Afinal, tanto Sophie quanto JJ são indivíduos solitários que buscam pertencimento em seus respectivos meios, algo comum na vida de possivelmente milhões de pessoas, independentemente de idade, nacionalidade e classe social.

Relativamente semelhante à sua performance como Drax na franquia “Guardiões da Galáxia”, Dave Bautista novamente compõe um personagem sisudo e abobalhado, cuja origem do humor surge a partir do contraste entre sua baixa inteligência emocional e seu físico imponente. Já a atriz mirim, Chloe Coleman, impressiona pela maestria como conduz sua interpretação de maneira sensível e verossímil. Não à toa, o diretor, ciente de seu talento e desenvoltura, usa e abusa de seus recursos cênicos na urgência de compensar as claras limitações expressas por Bautista.

Paralelo à trama principal, ocorre uma subtrama envolvendo terroristas, cujo tom acaba por soar um tanto quanto deslocado. Embora esses pequenos trechos não comprometam o todo, há uma legítima sensação de que o produto final poderia ter sido mais bem acurado caso as motivações dos antagonistas fossem mais bem exploradas e desenvolvidas. Fora isso, o clímax também deixa um pouco a desejar, particularmente na cena da queda em um penhasco, claramente feita às pressas em CGI mal renderizado. Também há uma incongruência no roteiro que de tão absurda foi incorporada em um diálogo no qual Bobbi questiona, com razão, a existência de uma pista de pouso localizada no topo de um colossal abismo.

Contendo mais acertos do que erros, “Aprendiz de Espiã” é uma divertida e prazerosa comédia com potencial de agradar tanto adultos quanto crianças. Seu subtexto universal a torna facilmente relacionável com qualquer um que, eventualmente, tenha experienciado em algum momento da vida o sentimento de solidão e inadequação. Ainda que parta de um lugar comum, a obra trilha o próprio caminho ao explorar de maneira inteligente e genuína a humanidade de seu núcleo principal, nos fazendo rapidamente compreender suas carências e aspirações. Aos de mente e coração abertos vale realmente a pena conferir.

Alan Fernandes
@alanfdes

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