Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 12 de março de 2020

O Oficial e o Espião (2019): (des)encontro de histórias

Roman Polanski conta como foi o escandaloso "caso Dreyfus" na França do século XIX, ecoando, para o bem e para o mal, sua própria história pessoal.

“O Caso Dreyfus” é uma das grandes manchas da história da França. Um misto de fraude jurídica e escândalo político que agitou o país entre 1894 e 1906, comprometendo a pretendida imagem de civilização exemplar e também a opinião pública em relação ao governo e ao Exército. A descida ao inferno começou com a prisão do capitão de artilharia Alfred Dreyfus, condenado por entregar informações militares sigilosas aos alemães, e se completou com a comprovação de que informações foram ocultadas e documentos forjados para aumentar a pena do homem. Essa trajetória vergonhosa é retratada em “O Oficial e o Espião”.

O filme aborda a punição de Dreyfus (Louis Garrel) por alta traição pelo ponto de vista do investigador Picquart (Jean Dujardin). Após o julgamento em um tribunal fechado e o envio do militar para o exílio, as averiguações à procura de outros possíveis traidores continuam no contexto de fim da Guerra Franco-Prussiana e ao desenrolar da Belle Époque. O protagonista só não esperava encontrar fortes indícios da inocência do capitão e enormes dificuldades para denunciar os erros do processo.

Inspirando-se no livro “An Office and a Spy” de Robert Harris, Roman Polanski (“O Bebê de Rosemary”) constrói sua narrativa a partir de dois temas: o antissemitismo e o enclausuramento injusto. Essas questões se encontram dentro da trajetória do personagem que vê sua audiência às portas fechadas ser contaminada por uma apuração incorreta e pelo preconceito aos judeus. Isso o levou a ser confinado na Ilha do Diabo, na Guiana, durante anos que o privaram da vida normal e do contato com outras pessoas – interessante também como os insultos aos judeus (na fala de autoridades militares e na despreocupação em vê-lo injustamente encarcerado) indicam que essa intolerância religiosa já havia ocorrido antes do período da Segunda Guerra Mundial. Ainda que haja fundamento no filme para tratar os dois aspectos, é inevitável não os associar ao próprio cineasta, que sofreu com a perseguição nazista no passado, é acusado atualmente de estupro a uma jovem menor de idade e não pisa nos EUA sob o risco de ser preso.

Além das controvérsias que cercaram a investigação, as complicações responsáveis por deixar uma página vergonhosa na história francesa giraram em torno do não reconhecimento do erro. Sob a justificativa de que reexaminar as provas comprometeria uma situação social de frágil estabilidade política e confiança popular do país, diversos líderes do Exército declaram que não há mais o que fazer e tentam ocultar suas falhas e discriminações para evitar uma perda de credibilidade. Mesmo sendo um discurso historicamente coerente com os fatos da época, o roteiro apenas aponta a existência desses riscos nos diálogos e não retrata alguma convulsão na sociedade através de cenas ou outros recursos visuais – um desperdício já que, de fato, a sensação de otimismo da Belle Époque poderia ser arruinada pelo escândalo, e o pessimismo da derrota na Guerra Franco-Prussiana poderia retornar.

Em termos estéticos, é curioso perceber que o diretor comanda uma narrativa que transforma estilos e abordagens, nem sempre de modo eficiente e convincente. Inicialmente, os efeitos da câmera são perceptíveis com planos gerais e estáticos da movimentação das tropas no ato da prisão, com a transição estilizada de um mapa para a ilha do Diabo e com o zoom out indicativo do isolamento da área prisional na Guiana. Em seguida, a discrição toma conta, assumindo um tom clássico que utiliza transições com cortes secos e flashbacks inseridos através do olhar de Picquart para algumas cartas (ainda que a fluidez entre passado e presente não seja tão clara).

À medida que o trabalho de detetive se desenvolve, outra alteração acontece: o drama da situação adquire o formato de uma trama de espionagem. O esforço do protagonista em provar a verdade e corrigir a injustiça o faz se enveredar por intrigas da política internacional, interesses obscuros de diferentes sujeitos, conflitos entre ele e seus superiores ou subordinados e os perigos para a revelação da farsa. A partir desse momento, a condução do cineasta e a atuação segura de Jean Dujardin são importantes para não deixar o ritmo cair ou o interesse pela história se enfraquecer, apesar de muitas resoluções serem aceleradas ou contadas por intertítulos explicativos (uma frustração para o espectador que espera a construção visual das reviravoltas ou das denúncias, mas as recebe sem o clímax necessário).

Quando o terceiro ato chega, o clássico cede lugar para a teatralidade e momentos mais pulsantes, também com resultados irregulares. A sessão num tribunal e as cenas de uma briga e de uma execução seguem um estilo teatral, bem sucedido apenas no caso do julgamento por emular os modos afetados da aristocracia do século XIX. Já a pulsação de sequências que envolvem a confrontação entre personagens se encaixa ao estágio da trama, por exemplo, numa manifestação popular nas ruas e na discussão entre Picquart e outro militar.

Percorrer tantos aspectos temáticos, históricos e estáticos faz “O Oficial e o Espião” ser uma produção complexa. Tamanha complexidade se evidencia na capacidade que os filmes têm de agregar novos significados de acordo com o público, independentemente das intenções dos realizadores. Isso pode ser observado na variação de tons ao longo da narrativa e, principalmente, na forma como Polanski espelha o caso Dreyfus à sua própria trajetória pessoal. Tal decisão se revela problemática ou, no mínimo, questionável, quando o diretor acaba sugerindo para si uma inocência e a vivência de uma injustiça que, certamente, desencadeiam reações muito díspares do público.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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