Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 08 de março de 2020

Dois Irmãos – Uma Jornada Fantástica (2020): emocionante RPG fraternal

Com a qualidade técnica de animação melhorando a cada filme, a Pixar entrega um filme visualmente deslumbrante, mas que conquista mesmo pelas mensagens de fraternidade, coragem e apreciação pelo presente.

O 22º filme da Pixar, “Dois Irmãos – Uma Jornada Fantástica”, se passa num mundo que retrata a sociedade do nosso planeta no início do século XXI. A tecnologia existe para facilitar a vida de inúmeras maneiras e todos se valem dela para tocar suas rotinas. A diferença vem do fato de seus habitantes serem criaturas tiradas de universos fantásticos, como elfos, ogros, centauros e até uma manticora. Com tais seres em seu rol, a revelação de que magia fazia parte das existências dessas criaturas milhares de anos antes encaixa como uma luva.

Só que usar magia não era tarefa nada simples, e com isso todos foram adotando novas tecnologias de fácil manejo com fervor, e as antigas habilidades foram esquecidas. Aqui a Pixar aproveita seu talento técnico estonteante para criar os cenários do longa, que não só parecem quase fotorrealistas como também espelham elementos da sociedade humana em que vivemos. De animais domesticados e pestes urbanas a restaurantes temáticos, há incontáveis paralelos que auxiliam na imersão, ganhando ainda mais força ao representar temas sérios de forma sutil, como a clara divisão de classes e as enormes indústrias que desenvolvem as tecnologias usadas.

Mas este não é um filme sobre a sociedade, mas sim sobre luto, aventura, viver no presente, superação do medo e o poder da fraternidade. A ideia veio do diretor Dan Scanlon (que capitaneia seu segundo longa do estúdio após “Universidade Monstros”), que perdeu seu pai quando ainda era muito novo e não se lembra dele. O cineasta se espelha nos dois irmãos do título, Ian e Barley Lightfoot (Tom Holland e Chris Pratt, respectivamente). Ambos elfos azuis de classe média que embarcam numa missão à la Dungeons & Dragons após receberem um presente tardio do falecido pai, entregue pela mãe Laurel (Julia Louis-Dreyfus) no aniversário de dezesseis anos do mais novo, Ian, seguindo instruções deixadas pelo marido.

O presente acaba revelando que Ian possui poderes mágicos e que, usando um feitiço específico, eles podem trazer o pai de volta por um único dia. Entretanto, nem tudo ocorre como planejado e eles só conseguem trazer, bem, as pernas do falecido. A aventura se inicia quando os conhecimentos de Barley sobre o funcionamento de missões épicas baseadas na sua dedicação a jogos de RPG indicam que eles podem encontrar o que precisam para terminar o feitiço e, assim, ver o pai.

Tom Holland foi uma escalação acertadíssima para o papel. Seu Ian transmite a dose certa de insegurança e timidez em um jovem cheio de receios, que o impedem de tomar atitudes mais saudáveis para si. O contraste com o Barley de Pratt, extrovertido, cheio de energia, um pouco inconsequente, mas confiante em sua persona (basicamente, o chaotic good de “Dungeons & Dragons”), deixa pronta a receita para um relacionamento gostoso de ser acompanhado em tela, onde um equilibra e influencia o outro. Ambos rendem cenas dinâmicas com ótima química. Assim como a inesperada dupla formada por Dreyfus e Octavia Spencer, que usam o ótimo texto para criar o tom certo de humor advindo das diferenças de suas personagens.

Como toda boa campanha de RPG, o impacto da experiência não está na conquista final, mas na jornada, nos relacionamentos construídos entre os outros jogadores e nos momentos memoráveis criados vividos em conjunto. Usar magia envolve ser verdadeiro consigo mesmo e com seus sentimentos, o que leva Ian numa bela trama de autodescoberta que discorre sobre o peso de relacionamentos familiares e homenageia o potencial de liberdade e camaradagem que existe numa relação entre irmãos.

A presença do pai, mesmo apenas com sua metade inferior, consegue divertir, criando momentos dignos de “Um Morto Muito Louco”, clássico dos anos 80, ao mesmo tempo que traz mais relevância à narrativa, sendo bem usado pelo roteiro para ilustrar a principal mensagem do longa: valorizar o presente ao invés de perder tempo se preocupando com o passado. É necessário destacar aqui a qualidade visual da Pixar na criação deste personagem, pois há momentos em que, pela linguagem corporal das pernas, os sentimentos da parte de cima ficam claros.

Em um momento, o roteiro ensina que o caminho mais fácil provavelmente não é o que vai dar certo, fazendo uma metáfora sobre relacionamentos, que precisam de confiança, sacrifícios e dedicação para superar os caminhos tortuosos e cheios de obstáculos apresentados pela vida. São vários elementos como esse que mostram o poder do estúdio em criar as mais variadas histórias e conseguir com que elas falem sobre diferentes aspectos de ser humano. Quando isso é bem construído, como é neste filme, o espectador se pega com o coração apertado e, ao mesmo tempo, alegre na hora em que a ficha cai para Ian num momento em que ele se pega acidentalmente ponderando sobre os acontecimentos do longa, resultando num clímax emocional que só a Pixar sabe fazer.

As muitas alegorias e menções a jogos de RPG entregam uma carga de nostalgia que vai tocar os corações dos fãs, ainda mais por não usá-las apenas como referências visuais divertidas, mas sim por mostrar o quanto eles podem incentivar seus jogadores a melhorarem aspectos de suas próprias personalidades. Com um roteiro que faz bom uso de humor e o equilibra com o drama de tal forma que a tal jornada do título nunca fique fúnebre nem boba demais, “Dois Irmãos” é um primor técnico que exemplifica o que a Pixar faz de melhor, apresentando uma história aparentemente singela que evolui para uma conexão pessoal sempre abraçando um lado humano de seus espectadores.

Bruno Passos
@passosnerds

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