Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Hunters (Prime Video, 1ª Temporada): vingança aquém do potencial

Surgida de uma excelente premissa, a série se mostra satisfatória ao trazer a condução de um bom debate e algumas figuras cativantes, mas deixa um gosto amargo por desperdiçar boas ideias através de um desenrolar monótono e um tom inconsistente.

Conhecido por seu estilo ácido e inteligente, o comediante Jordan Peele conquistou legiões de fãs ao fazer sua estreia nas telonas com o horror racial “Corra!”. Ótimo na construção de poderosas críticas sociais, o cineasta surpreendeu muitos ao transportar com sucesso a divertida assinatura de seu show televisivo “Key and Peele” para o gênero do terror, habilidade que apenas reforçou com o igualmente impactante “Nós”. Dessa forma, o anúncio de que o diretor produziria “Hunters” gerou muita empolgação, deixando o público curioso para saber como ele iria (mesmo que de forma mais indireta) atacar o nazismo a partir de seu humor bastante particular. Após meses de espera e especulação, entretanto, o produto final da Amazon Prime Video apresenta uma interferência criativa menor que a esperada da parte de Peele e traz algumas dificuldades na construção de uma identidade própria, jamais alcançando toda a capacidade desse conjunto de excelentes ideias.

Ambientado nos Estados Unidos do final da década de 70, o seriado apresenta o jovem Jonah Heindelbaum (Logan Lerman), rapaz que divide com a avó Ruth (Jeannie Berlinn), sobrevivente do tenebroso Holocausto, uma vida difícil em um perigoso bairro nova-iorquino. Amante de histórias em quadrinhos, ele investe na venda de drogas para tentar sustentar a querida senhora, afundando em uma vida criminosa e incapaz de ingressar faculdades por limitações financeiras. Tudo piora quando a velhinha é brutalmente assassinada, tragédia que prende o garoto em uma alucinante busca por vingança. É assim que Jonah acaba conhecendo o milionário Meyer Offerman (Al Pacino), um misterioso senhor judeu que o recruta para um imponente grupo de caçadores de nazistas. Afastado de suas raízes judaicas, o menino passa a explorar a história de sua família enquanto embarca em uma jornada para desmascarar uma ameaçadora conspiração ariana. Tem-se assim uma forma bastante interessante de denunciar a metamorfose do ódio com o avançar das décadas, mas que recebe um tratamento oscilante do estreante David Weil.

Apesar das decepções, seria injusto ignorar, primeiramente, os acertos que a obra traz consigo. Responsável pelo roteiro (ao lado de escritores de atrações como “Watchmen” e “Grey’s Anatomy“), Weil é bem intencionado desde o primeiro episódio, construindo uma narrativa que, apesar do foco nos avanços investigativos da equipe, encontra sempre espaço para recriar passagens pelos opressores guetos e campos de concentração (principalmente o de Auschwitz). Para tal, a obra utiliza da aproximação do protagonista com o passado de sua avó, construindo dramatizações tristes – e que esbanjam cuidadosos valores de produção na recriação da obscura época – dos relatos que ele encontra em antigas cartas e nas conversas com Offerman, antigo amigo da mesma. Dessa forma, o roteirista relembra a todo momento a importância de se trabalhar esse tema no audiovisual, prestando sinceras homenagens às milhares de vítimas do regime nazista. Em momentos pontuais, entretanto, ele adota “licenças poéticas” na descrição das monstruosidades do exército alemão, recurso desnecessário visto que a realidade já foi suficientemente perturbadora. Nesses casos, as boas intenções acabam por surtir, mesmo que acidentalmente, o efeito contrário.

Embora monte um time demasiadamente grande, outro mérito do criador está na construção de arcos satisfatórios, característica que felizmente se aplica à figura central. Inicialmente motivado apenas pela morte de Ruth, Jonah começa a perceber que o fardo carregado pelo esquadrão vai muito além de justificativas pessoais. Entendendo a necessidade de honrar milhões de mortos e sentindo-se cada vez mais próximo do povo judeu, ele passa a ser invadido por uma sanguinária necessidade de vingança, efeito que não só o consome internamente como também inicia uma importante discussão sobre a tênue linha que separa vigilantes de assassinos. Dividido entre a conduta dos heróis de suas HQs e os conselhos de seu novo tutor, ele segue questionando qual seria a opinião da matriarca, aspecto que rende a Logan Lerman a atuação mais complexa de sua carreira até o momento.

Destaca-se também o núcleo liderado pelo simpático casal Markowitz (os carismáticos Saul Rubinek e Carol Kane) – marcante por ser o emocionalmente mais carregado e por abordar de forma inteligente a perda da fé em momentos de desesperança – e a trajetória da investigadora Millie Morris (Jerrika Hinton), chamativa ao contrapor com o lado “clandestino” da justiça e por ilustrar a resistência de outros grupos perseguidos pelos alemães. É uma pena, entretanto, que o mesmo não possa ser dito sobre o grande chamariz do elenco, visto que a personagem de Al Pacino é resumida a um mero artifício expositivo e pouco extrai da alta capacidade do ator.  Além disso, são muitos os resumidos a meras caricaturas (característica que também se aplica aos vilões) e alívios cômicos (caso da figura de Josh Radnor), recebendo alguns flashbacks que, apesar do potencial, são insuficientes na conquista do público.

Mesmo com importantes reflexões e alguns bons personagens, não há como negar que a produção apresenta um ritmo bastante arrastado. Composta por dez episódios de pelo menos uma hora, a série se estende exageradamente com uma estrutura pouco inventiva, encontrando obstáculos em manter a atenção do espectador. Com um avançar baseado na lista de nazistas a serem assassinados, a maratona se mostra extremamente lenta e repetitiva, sustentando perseguições e sequências de ação que carecem de criatividade. Somando esse aspecto à existência de antagonistas pouco ameaçadores (embora seja interessante desvendar como os mesmos se infiltraram em solo americano) e a grande quantidade de subtramas – cansativas por trazer os coadjuvantes pouco cativantes -, tem-se uma série que tarda bastante em envolver quem a assiste (guardando seus momentos mais enérgicos apenas para o final), sendo impossível não considerar que o formato de filme talvez fosse mais benéfico.

Não suficiente, porém, o maior problema encontra-se no tom caótico do seriado, indeciso entre se aprofundar nos momentos de dramaticidade bem executados ou inserir traços de uma personalidade mais próxima de Jordan Peele. Vendida por seus empolgantes trailers como uma obra de caráter mais cartunesco (algo próximo do “Bastardos Inglórios” de Tarantino), “Hunters” prioriza seu DNA dramático em detrimento de cômicos comentários, escolha que pode desapontar alguns desavisados. Essa decisão poderia ser bem aproveitada, mas a falta de coragem em se assumir como algo mais sério fala mais alto, impondo esquetes e montagens que causam grande estranheza e que não fazem jus à assinatura cool com a qual o programa tenta flertar. É claro que a harmonização entre humor e drama é sempre possível (haja visto, por exemplo, o oscarizado “Jojo Rabbit“) , mas nesse caso ela acaba apenas por diminuir uma experiência que poderia ser mais inesquecível se priorizasse algum dos dois extremos.

Repleto de boas ideias e intenções, “Hunters” é uma série que possui alguns pontos altos, mas que peca em tentar equilibrar seus momentos mais sombrios com o caráter “descolado” que tanto tenta exibir. Mesmo conduzida por um bom protagonista, ela não consegue lidar com um perceptível inchaço no time de coadjuvantes e é parcialmente afundada por seu ritmo bastante arrastado, embora compense com suas interessantes reflexões e certas surpresas guardadas para o final. Sabotada por um grande medo de ousar, entretanto, a produção nunca atinge todo o seu potencial, amargando como uma obra passageira que poderia ter decolado como uma das mais criativas e empolgantes dos últimos anos. Que a segunda temporada do programa corrija erros do passado!

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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