Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de fevereiro de 2020

A Arte da Autodefesa (2019): masculinidade tóxica

Mesclando humor negro com um drama mais pesado, produção debate os perigos e consequências do machismo.

Amplamente discutido atualmente, o termo masculinidade tóxica se refere às características estereotipadas normalmente atribuídas às figuras masculinas. Frases feitas como “homem não chora”, “lute como um homem”, “ela corre que nem mulherzinha”, “homem precisa de sexo”, “isso é coisa de gay”, entre outras, infelizmente ainda persistem em pleno 2020. Porém, aos poucos a figura machista vem perdendo seu lugar e os homens encarando uma espécie de reeducação comportamental a fim de acabar com o machismo estrutural que tanto assusta. O bom cinema acompanha as mudanças pelas quais o mundo passa e serve de ferramenta importante no combate a atitudes ultrapassadas e deploráveis. Mesmo sem uma divulgação relevante e com pouco espaço nos cinemas, “A Arte da Autodefesa” tem uma história absurda e repleta de humor negro que promete levar ao público a mensagem necessária sobre as causas e consequências de um ambiente masculino venenoso.

Escrito por Riley Stearns, o roteiro acompanha Casey (Jesse Eisenberg), um solitário contador que é excluído pelos colegas de trabalho e abusado emocionalmente pelo chefe. O rapaz leva uma vida burocrática e oprimida ao lado de seu cachorro salsicha. Após ser atacado violentamente por um grupo de motoqueiros enquanto voltava do mercado e ficar meses internado, ele decide tomar uma atitude para tentar se livrar do medo e espantar o trauma sofrido, se inscrevendo numa academia de karatê. Disposto a aprender autodefesa, ele conhece o sensei Leslie (Alessandro Nivola), um professor machista linha dura que ensina através de filosofias bem questionáveis. O protagonista é uma dessas tantas figuras que ouvimos falar por aí que sofrem com esse tipo de preconceito enraizado na sociedade. É discriminado por ser discreto, sensível e por seu nome soar feminino demais. E assim como a maioria considerável dos indivíduos, é forçado a acreditar que brigar resolve tudo.

Jesse Eisenberg já viveu diversos personagens vistos como estranhos ou perturbados ao longo de sua carreira: do todo poderoso insensível Mark Zuckerberg em “A Rede Social“, passando pelo jovem nerd James Brennan de “Férias Frustradas de Verão“, o sistemático matador de zumbis Columbus de “Zumbilândia” e até mesmo o megalomaníaco Lex Luthor de “Batman vs Superman: A Origem da Justiça“. Tarimbado, não é de se espantar que o ator lide tão bem com esse tipo de persona. Nessa nova produção, ele aciona o seu jeito particular de interpretar sujeitos inclinados ao antissocial, conferindo a Casey um comportamento passivo cheio de nuances, definido de cara pela personalidade frágil. Dessa maneira, é quase impossível não se identificar com ele, que se mostra capaz de extrair certa humanidade mesmo que, por vezes, aja como um robô programado para se dar mal. À parte da sociedade, não consegue perceber as atitudes nocivas de seu instrutor, o que torna sua gradativa descoberta mais atraente.

Enquanto algumas produções optam por retratar o machismo a partir de narrativas filosóficas ou de maneira mais sutil, o roteiro do cineasta prefere adotar uma postura direta. Sem rodeios, expõe os males causados pela masculinidade excessiva por meio do karatê – e um ambiente que, em tese, deveria ensinar a arte marcial com base em dogmas pacificadores acaba por se tornar violento. Além disso, vê no frágil protagonista uma presa fácil para a seita onde os fortes sobrevivem e as mulheres (ainda que competentes) jamais irão atingir o sucesso. Incrementando esse debate, coloca em cena a obstinada Anna (Imogen Poots), aspirante a sensei que esbarra no machismo de Leslie, que não por acaso designa a ela o trabalho como professora de uma turma infantil. Ela representa um nicho de mulheres, que voluntária ou involuntariamente, se submete aos mandos e desmandos do homem para quem sabe um dia ser reconhecida pelo seu talento.

Responsável também pela direção, Riley Stearns não poupa o espectador de cenas mais pesadas que envolvem agressões físicas e encontra nas ações do personagem principal uma maneira fácil de ancorar sua narrativa sem que esta soe caricata em demasia. Destaque também para os eficientes trabalhos da fotografia de Michael Ragen e do design de produção de Charlotte Royer: o primeiro elemento cobre a maioria dos planos com tonalidade pastel, reforçando a vida pálida e sem expressão de Casey, já o segundo concebe ambientações ora sufocantes e burocráticas (a casa do protagonista) ora opressoras e desconfortantes (a academia transformada num lugar temido). Embora “A Arte da Autodefesa” desenvolva sua discussão sem grandes pretensões, se mostra um instrumento interessante, válido, cruel e por que não divertido para abrir os olhos de quem ainda tem dúvidas sobre o efeito danoso que a virilidade do homem exerce na sociedade. Um filme digno da cobiçada faixa preta.

Renato Caliman
@renato_caliman

Compartilhe