Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

O Jovem Ahmed (2019): testando os limites da empatia

Com ousadia e um tema polêmico, os irmãos Dardenne trazem um novo exemplar de seu cinema imparcial e reflexivo, dessa vez sobre as decisões ruins de um menino influenciado pelo fundamentalismo religioso.

Os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne são grandes produtores cineastas cujos trabalhos na direção trazem fortes marcas recorrentes, quase como assinaturas visuais e narrativas. Figuras frequentes nos festivais de Cannes (inclusive ganhadores de duas Palmas de Ouro até então), com “O Jovem Ahmed“, suas vozes quiseram contar a história de um menino muçulmano em vias de sedução pelo extremismo islâmico. Mesmo a partir de um tema tão sensível quanto esse, sua câmera praticamente documental mais uma vez exercita a imparcialidade e evita o moralismo, deixando a emotiva jornada e de difícil aceitação para o espectador.

O rosto ainda infantil do adolescente Ahmed (Idir Ben Addi) dificulta a pressa para julgá-lo por suas atitudes. Como qualquer garoto que busca inspiração para encontrar uma identidade e um objetivo, infelizmente tal espaço é ocupado pelo radicalismo religioso por estar na rede de influência de um grupo de fundamentalistas. A típica rebeldia juvenil, muitas vezes somente para contrariar pais e professores, se manifesta no rapaz como uma necessidade de obedecer a interpretações questionáveis do Alcorão para assim pertencer ao grupo que o encanta.

Os conflitos surgem ao começar a confrontar as figuras femininas de sua vida, que segundo ele não estão agindo como verdadeiras muçulmanas. Os irmãos Dardenne demonstram buscar diferentes perspectivas com sensibilidade e sem julgamento, como na discussão entre pais na escola sobre como o árabe deve ser ensinado para as crianças – apesar de a história se passar na Bélgica, trata-se de uma comunidade muçulmana. No entanto, o protagonista vê sua professora como uma infiel e, dotado de um sentimento de propósito, decide atentar contra sua vida.

Acompanhando seu protagonista a todo instante, a câmera dos diretores não procura momentos para punir nem corrigi-lo por seus atos. O percurso definido pelo roteiro simplesmente o segue pelas consequências de seu crime com um naturalismo documental (alcançado também graças à ótima interpretação do estreante ator). Diferente de uma narrativa clássica hollywoodiana, a redenção não parece estar a caminho do destino de Ahmed. Tal situação coloca o espectador numa posição bastante angustiante, pois apesar de não apoiar de nenhuma maneira suas atitudes, o filme também não tenta “educá-lo” nem afastá-lo dos ideais extremistas. No desenrolar da trama, nada é construído em relação a uma esperada catarse pela redenção. Não há nenhum sinal moralista de que o “bem” vencerá o “mal”, sequer se o “vilão” é o adolescente ou as ideias que tomaram sua cabeça. Esse parece ser exatamente o objetivo dos cineastas.

Em comparação com um de seus trabalhos anteriores, “Dois Dias, Uma Noite“, a protagonista interpretada por Marion Cotillard é “perseguida” pela câmera assim como Ahmed, mas naquela produção ela é a personagem que sofre a fatalidade inicial. Enquanto o espectador espera um desfecho satisfatório, projeta-se nela sentimentos positivos de compaixão, esperança, força e solidariedade, ainda que numa situação de potencial injustiça. No novo projeto, o protagonista é o agente da injustiça, aparentemente irredimível, ao qual é oferecido poucas chances para aprendizado. Pelo contrário, o menino teima em manter suas convicções não importa o que ele tenha a perder. Acompanhar um personagem assim é mais difícil que a da obra anterior porque não se está torcendo para ele vencer, se torce no máximo para ele não se destruir e parar de machucar outros no caminho.

No entanto, a partir de uma certa sutileza, é possível notar a sensatez dos personagens coadjuvantes. Existe o calor da família, a confiança nas instituições. A direção não aponta dedos. Nem mesmo perante um “vilão” tão bem definido quanto o extremismo religioso, não há maior inimigo a Ahmed que ele próprio. Inevitavelmente, a moral do público é testada até o último momento.

A discussão sobre quando a sociedade falha perante o indivíduo, ou vice-versa, faz da produção um interessante e inesperado contraponto à jornada de “Coringa” de Todd Phillips. São dois filmes bastante distintos, porém, em busca de algum valor comum, o público tende a encontrar empatia mesmo no pior personagem quando a narrativa mergulha na sua perspectiva. Apesar de acompanhá-lo todo o tempo, a câmera (vulgo, a visão dos diretores) é imparcial, logo torna-se difícil encontrar meios para empatizar com o adolescente, mesmo sendo ele também uma vítima da sociedade em que está inserido.

Quem puder alcançar o fim da jornada do menino Ahmed conforme os diretores planejaram terá muito o que debater após o término da sessão. De certa forma, a trajetória do personagem importa menos que as próprias reações e sentimentos do público ao acompanhar a história. Essa experiência reflexiva que os irmãos Dardenne permitem por si só justifica o filme. Por outro lado, a reflexão provocada por “O Jovem Ahmed” não é a que o público comum pode entender como diversão no cinema.

William Sousa
@williamsousa

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