Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 01 de março de 2020

Varda por Agnès (2019): um poético adeus à mãe da Nouvelle Vague

Em seu último trabalho, Agnès Varda fala sobre a paixão pelo cinema, passeia pelos principais trabalhos e mostra porque é um dos nomes mais importantes da história da sétima arte.

A história do cinema é feita por personagens que estão à frente e atrás das câmeras, e Agnès Varda entendia isso. Sua carreira foi construída com narrativas que poderiam ser contadas com as lentes viradas para trás, registrando a si mesma durante as filmagens. Ela vivia a arte que estava ajudando a construir e tinha voz ativa em todo o processo de criação, mas comandava suas obras sem qualquer tom imperativo. Apesar disso, a diretora nem sempre era de convívio fácil, conforme a atriz Sandrine Bonnaire se recorda em determinado momento de “Varda por Agnès”, documentário de despedida da própria cineasta, que passeia por alguns dos momentos mais importantes de sua trajetória construída ao longo de seis décadas.

Enquanto olha para os mais de cinquenta projetos que dirigiu, conversa com uma plateia de jovens estudantes de audiovisual, dentre os quais poucos conhecem a fundo a vastidão do que seu nome representa. Através dessa mistura de gerações, é possível ver como ela é uma pessoa que soube caminhar ao lado do cinema, não tendo filmes que pareçam antiquados. Assim, vê-la relatando a própria jornada é o que garante o grande destaque da produção.

Com uma abordagem amigável e didática, Varda se mostra orgulhosa da carreira que criou. Pertencendo a uma geração que apostava na criatividade acima de tudo, seu objetivo era construir histórias com as quais as pessoas pudessem se identificar. Porém, diferente do que manda o clichê, ela reconhece que fugia do convencional. Sua filmografia é formada por enredos simples, mas extraordinários, que poderiam ser sobre qualquer pessoa, mas filmadas a partir de seu olhar único. 

Do ponto de vista narrativo, há uma relação direta com “As Praias de Agnès”, de 2008 outro documentário de memórias feito pela própria diretora e que contempla suas principais obras. Talvez por isso, seu último trabalho possa soar um pouco repetitivo para fãs de longa data. Há, em alguns momentos, uma sobreposição de narrativas, reforçada pelo curto período que os separa. Apesar disto, seus esforços para não se repetir podem ser vistos, mesmo quando fala sobre os mesmos filmes. Entretanto, há uma diferença mais fundamental do que a simples mudança de estilos — aqui com uma abordagem muito menos experimental. Enquanto na produção anterior, a realizadora, então uma octogenária, passava a se olhar no espelho e lidava com o medo da morte iminente, agora, aos noventa anos, ela parece se sentir mais leve com esse conflito interno. É como se, passados esses dez anos, a possibilidade de morrer já não lhe causasse mais tanto temor, quase a divertindo, de certa maneira.

Sempre desafiadora, é possível ver como procura não se afastar do que a fez ser um dos nomes mais importantes da história da sétima arte. Feminista declarada, ela não tinha medo de ser protagonista de uma Nouvelle Vague tão masculina, mantendo-se em destaque ao lado de François Truffaut e Jean-Luc Godard. Contudo, foi além e marcou sua posição graças à sua inventividade e espontaneidade. Por isso, fala com a mesma naturalidade de algumas obras muito relevantes, como “La Pointe Courte”, “Cléo das 5 às 7” e “As Duas Faces da Felicidade”, como de alguns dos principais fracassos, como “O Amor dos Leões” e “As Cento e uma Noites”.

Por décadas, diversas mulheres tiveram seus nomes apagados da história do cinema. Foram profissionais das mais diversas áreas, que ajudaram a construir essa atividade artística, no entanto foram deixadas de lado até que as novas gerações decidissem trazê-las de volta ao lugar de onde jamais deveriam ter saído. Felizmente, Agnès Varda jamais precisará passar por esse esquecimento. A diretora, roteirista, produtora, montadora e fotógrafa deixou um legado que jamais poderá ser ignorado. E isso faz de “Varda por Agnès” um filme ainda mais simbólico, como se fosse uma despedida em vida, que reconhece o patrimônio que fica. Uma prova que histórias incríveis serão contadas, desde que estejamos dispostos a conhecê-las. 

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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