Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de janeiro de 2020

A Divisão (2020): digna de cinema, mas melhor como série

Concebida como série, a primeira temporada de "A Divisão" ganha uma versão editada para aproveitar o que oferece de melhor nas salas de cinema, entretanto, para tal fim, acaba comprometendo sua narrativa.

Quem viveu no Rio de Janeiro nos anos 1990 possivelmente sentiu o medo provocado pela onda de sequestros que assombrou a cidade. Inspirada neste contexto factual, a produção “A Divisão” tem como mote a criação de uma força-tarefa, a Divisão Antissequestro, conhecida historicamente pelo resultado positivo de sua atuação. A obra dirigida por Vicente Amorim (“Motorrad“) é na verdade um produto duplo: longa-metragem nos cinemas e série original da plataforma de streaming Globoplay. A saber, o filme é um corte de 134 minutos feito a partir do arco da primeira temporada que, com somente cinco episódios, não é tão mais longa que isso.

O eixo desta produção/temporada está na resolução do sequestro da filha adolescente de um político dentre os tantos outros casos menos proeminentes. No entanto, a primeira ousadia da obra é equilibrar uma quantidade relativamente grande de personagens com devida importância para a trama além dos seus protagonistas. A saber, Erom Cordeiro possui o papel central como o policial Santiago – canalizando um Colin Farrell brasileiro em sua atuação – ao lado do Delegado Mendonça, interpretado por Silvio Guindane. Com eles surge a segunda ousadia: ambos estão longe do estereótipo de heróis, tanto que mal se enquadram como anti-heróis. Santiago é um agente corrupto que, com seus parceiros Ramos (Thelmo Fernandes) e Roberta (Natália Lage), vive extorquindo bandidos em troca de liberdade. Já Mendonça é conhecido como genocida pela extrema truculência de suas batidas policiais. Embora cada um tenha sua moral, não são exatamente como se costuma apresentar “mocinhos” devido à problemática de suas ações. Menos dúbios em relação aos seus papéis estão Marcos Palmeira, Osvaldo Mil, Augusto Madeira, Bruce Gomlevsky, Cinara Leal, Rafaela Mandelli, entre outros de um elenco no geral bastante acima da média.

Pelo cuidado com a estética, “A Divisão” almeja ser muito mais do que aquela série policial para ver antes de dormir. Existe uma concepção visual nas cores uniformes, focos de lentes e posicionamento de luzes e câmeras, que revela uma preocupação entre Vicente Amorim e o fotógrafo Gustavo Hadba para construir uma identidade para a produção. Grandes obras nacionais semelhantes, como “Tropa de Elite” e “O Lobo Atrás da Porta“, são lembradas pelo mesmo esmero. Dessa forma, levar uma versão redux da série aos cinemas carrega um objetivo até mais nobre que capitalista: a beleza das imagens é realmente realçada na tela grande. Por outro lado, tal decisão chega com um custo alto demais para justificá-la. A narrativa da primeira temporada já é super enxuta, daí quando mais cortes são necessários para formatá-la ao cinema, ritmo e roteiro sofrem de tal maneira que prejudicam a experiência do público e, consequentemente, comprometem a qualidade final da obra.

Além disso, devido ao pouco tempo dedicado para desenvolver melhor a complexidade da história, mesmo na sua versão seriada, a compreensão da trama se apoia muito na ótima e dinâmica montagem de Daniel Lemos. Porém, o resultado nos cinemas é o equivalente a tentar ler palavras escritas somente com consoantes, sem as vogais. Entender é possível, mas é óbvio que estão faltando partes. Dessa forma, embora som e imagem sejam melhor apreciados nos cinemas, os cortes feitos machucam a narrativa que já testa os limites das elipses no formato original.

Vale notar que a necessidade de reproduzir o Rio de Janeiro do final do século traz complexidade extra para o departamento de arte, que precisa ser fiel no figurino e na cenografia, incluindo carros, telefones, móveis e eletrônicos da época, sem chamar muita atenção para si. Outra característica de “A Divisão” que merece destaque é a decisão de não afastar a câmera nos momentos mais brutais. Não há jogo de montagem para que a violência só aconteça na cabeça do espectador. As ações são explícitas. Quando alguém atira em outro, bons efeitos especiais permitem que toda a cena seja vista, por mais dura que seja. Não há como negar uma mudança de tom nestas sequências, que às vezes se aproximam de um filme de terror. Tais saltos podem desagradar uma parcela do público que curte a ação policial, mas não tem tanto estômago para os litros de sangue derramados.

A provocação da produção também não se restringe à violência gráfica. Alguns personagens são levados a tomar decisões chocantes que podem atiçar reações de uma audiência muito envolvida ou até desapontar alguns com o desfecho da versão adaptada aos cinemas. A boa notícia é que, na cronologia de “A Divisão”, o filme cobre os eventos dos quatro primeiros episódios, deixando as consequências para o quinto e último episódio da primeira temporada, que também prepara terreno para a segunda com a adição de novos personagens. Para o espectador que pretende ter uma experiência mais positiva com a obra, prefira a série, mas na melhor televisão possível para aproveitar toda a cinematografia que ela oferece.

William Sousa
@williamsousa

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