Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 18 de janeiro de 2020

Uma Mulher Alta (2019): a guerra com rosto de mulher

Filme russo pré-selecionado ao Oscar e baseado no livro vencedor do Nobel de Literatura mostra os traumas da Segunda Guerra pelos olhos, corpos e afetos das mulheres.

Uma Mulher Alta” é livremente adaptado do livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1985), da escritora bielorussa Svetlana Aleksiévich – trechos da introdução da impactante compilação de relatos de guerra femininos realizado pela jornalista vencedora do Nobel de Literatura de 2015 serão usados nessa crítica na forma de citação, com a indicação da página entre parênteses para a edição da Companhia das Letras de 2016, até agora a única disponível em português. Esse é apenas o terceiro longa-metragem do jovem Kantemir Balagov, de 28 anos, e teve uma respeitável carreira internacional, ganhando dois prêmios no Festival de Cannes. Escolhido pela Rússia como seu representante no Oscar e ficando até a última lista de pré-indicados, o filme acabou não entrando na lista final dos postulantes à estatueta de Melhor Filme Estrangeiro de 2020. Contudo, isso não diminui as qualidades desse denso drama de guerra, passado nas ruínas de Leningrado logo após o fim dos combates.

Voltei para a casa com cabelos brancos. Vinte e um anos e a cabeça branquinha“. (p.  53)

O drama de Ilya (Viktoria Miroshnichenko, a “Dylda” do título original) e Masha (Vasilisa Perelygina) é entremeado pelos horrores da guerra e pelas sutilezas femininas tal como nas páginas de Svetlana, ainda que a história no cinema não seja uma adaptação de nenhuma passagem específica de seu livro. O que se transporta à tela é mais a atmosfera de desumanização de um conflito extenso e feroz como foi a II Guerra Mundial, tendo como foco o ponto de vista das mulheres, geralmente secundarizadas nessas tramas de batalha em que os papéis de herói e vilão cabem aos homens e suas armas fálicas. Às mulheres geralmente servem os papéis “daquela que precisa ser salva” ou “daquela que é abusada” nesses contextos de terror. Aqui, porém, ainda que a jornada de Masha pelas trincheiras não seja mostrada, e os horrores vividos por Dylda tampouco, é das cicatrizes da batalha que se faz o drama e a aliança entre essas protagonistas, cada uma forte à sua maneira.

“Entendo agora a solidão da pessoa que volta de lá [da guerra]. Ela tem o conhecimento de algo que os outros não têm, e só é possível conquistá-lo ali, perto da morte”. (p. 17)

Ilya, chamada por todos de Dylda, apelido para “altona”, é uma enfermeira em um hospital de veteranos que sofre de ataques esporádicos de paralisia, como uma narcolepsa que ao invés de dormir é jogada em um poço de traumas inimagináveis pelos mais imprevisíveis gatilhos. É assim, inclusive, que o filme começa: com Dylda paralisada de pé na lavanderia, enquanto suas colegas, já acostumadas com sua condição (pois cada uma tem seu trauma pessoal), continuam com seus afazeres despreocupadamente. Ela cuida de Pashka, filho da amiga Masha, até que ela volte da guerra. Ao retornar, porém, Masha não encontra o filho, e a jornada de descoberta sobre o que aconteceu com ele e de como essas mulheres tentarão superar mais esse trauma é o principal fio condutor da história.

A última cena de Pashka é, inclusive, a mais emotiva do filme, ainda que se trate de um daqueles longas que podemos enquadrar no escaninho do “para chorar litros”. Isso porque o menino é introduzido como uma espécie de Giosué, o adorável garoto de “A Vida é Bela” (1997), a quem o personagem de Roberto Benigni tentava de todas as maneiras falsear os horrores da guerra e do campo de concentração. Nos filmes russos, porém, o trato não é tão delicado. Ilya não parece tentar disfarçar a realidade para o garoto, embora no contexto hospitalar todos pensem que Pashka é seu filho. O menino, porém, é a alegria da “altona” e de todo o hospital, sopro de vida em meio a um nevoeiro de morte, entre soldados decrépitos à beira da morte ou desejando morrer, a viver nas novas condições que seus ferimentos impõem.

A vila de minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram“. (p. 10)

As atuações das duas mulheres são irretocáveis, e o mesmo pode ser dito da direção de arte e dos figurinos, embora a condução na narrativa às vezes faça a historia se arrastar sem necessidade. O filme é belíssimo e a escolha do diretor por uma câmera de mão, na altura das personagens, faz com que ele seja menos frio e impessoal do que, por exemplo, o polonês Ida (2013), ainda que com isso ele também perca um pouco de sua iconoclastia. O que mais surpreende a partir desse filme é perceber que mesmo depois de tantas décadas pós-II Guerra, tantos filmes, livros e séries sobre o tema, ainda existam novas abordagens a se apresentar sobre os horrores daquele período. Cicatriz aberta para aqueles ainda vivos, ou aos familiares e descendentes das vítimas, a cura não vem espontânea a partir da simples e breve passagem do tempo. Os afetos e efeitos do horror ainda precisam ser rememorados, especialmente enquanto ainda existirem aqueles que teimem em negá-lo ou em tentar repeti-lo.

“O ser humano é maior que a guerra” (p. 16)

Vinícius Volcof
@volcof

Compartilhe

Saiba mais sobre