Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 06 de janeiro de 2020

Downton Abbey – O Filme (2019): sarcasmo e crítica social na medida

Filme oriundo da série homônima tem incrível êxito em apresentar uma surpreendente quantidade de tramas e personagens e conseguir amarrar tudo num texto rico, engenhoso e cheio de subcamadas. É capaz de satisfazer não só os fãs antigos como também de atrair novos.

A deliciosa sequência inicial de “Downton Abbey – O Filme” leva o espectador pela longa jornada cheia de burocracia e eficiência da sociedade inglesa do início do século XX. Através de uma carta saindo de Londres e chegando à mansão dos protagonistas, onde membros da alta aristocracia britânica e um grande time de funcionários vivem suas vidas cheias de protocolos, emoções e fofocas, são mostradas essas características pinceladas a acontecimentos históricos reais como pano de fundo.

O filme é escrito por Julian Fellowes, criador da série homônima que foi ao ar entre 2010 e 2015, continuando a história com presença de grande parte do enorme elenco. O longa se passa em 1927, quando a família Crawley – dona da residência – se prepara para receber a visita do rei Jorge V (Simon Jones) e da rainha Maria (Geraldine James), que visitarão o interior e se hospedarão lá por uma única noite. Isso dá início a uma onda de preocupação e empolgação dos empregados do local, ansiosos por servir a família real. Os conflitos nascem quando a trupe de asseclas da coroa chega antecipadamente e impõe regras que basicamente deixam o time de Downton de lado.

Além disso, Mary (Michelle Dockery) se pergunta se a família deveria continuar morando na mansão, o mordomo aposentado Carson (Jim Carter) precisa voltar à ativa para chefiar os funcionários, Tom Branson (Allen Leech) se envolve numa trama de tentativa de assassinato que discorre um pouco sobre as tensões entre Inglaterra e Irlanda do Norte, Thomas Barrow (Robert James-Collier) precisa lidar com o fato de ser afastado da posição que tanto lutou para conquistar ao mesmo tempo que encara o preconceito da sociedade da época perante sua sexualidade, Violet (Maggie Smith) e Maud (Imelda Staunton) estão em pé de guerra para decidir sobre herança desta – objeto de discórdia e desavença que gera cenas de absoluto deleite entre duas grandes atrizes.

O número de tramas e subtramas assusta e, acredite, as mencionadas no parágrafo acima não são todas. Porém, é impressionante como a narrativa dá conta de tudo. Não sem percalços, claro, há elementos apressados e expositivos, mas funcionam. É um festival de situações cheias de comentários sagazes que, mesmo nunca sendo diretos, alfinetam na medida certa – fato igualmente refletido na direção que corta para a reação silenciosa de alguns personagens e deixa seus rostos dizerem muita coisa, a maioria hilária.

Não é necessário ter acompanhado a produção televisiva para se entreter com esse filme, apesar de ser óbvio o fato de quem for fã de longa data pegar diversas camadas de interação e easter eggs que devem enriquecer a experiência. O drama sobre a nobreza e seus serviçais é rico não só na precisa recriação da Inglaterra do período, com luxuosos cômodos fartamente decorados dos andares superiores contrastando com os mais modestos e desguarnecidos nos inferiores, que ilustram a divisão de classes. Ademais, há boas metáforas representadas nos fabulosos figurinos e modos de fala daquelas figuras, mas também na quantidade de tramas exploradas com êxito e de pessoas que vivem constantemente tentando equilibrar decoro com reações indignadas.

O número de personagens pode parecer um obstáculo para acompanhar a progressão da história. Entretanto, mesmo com tantos nomes, todos estão envolvidos nas tramas de alguma forma, ninguém é desperdiçado ou tem presença apenas gratuita como um fan service mal colocado. Nesse festival de preparação que envolve eventos corriqueiros como o preparo e consumo de refeições, costura de vestidos, organização de cadeiras e conserto de cadeiras, o roteiro passeia por essa miríade de pessoas interagindo, conversando, brigando e se relacionando com tanto louvor que impressiona.

Todos esses conflitos são temperados por eventos reais da história inglesa, que muitas vezes conduz conversas e atitudes que ditam cenas e suas conclusões. É um texto farto em sua crítica ao sistema social que causa a enorme divisão de classes mantida até o século seguinte, contudo faz tudo isso se concentrando na rotina daqueles indivíduos encontrados em cada posição social distinta. É sutil, inteligente e sagaz.

“Downton Abbey – O Filme” consegue entreter fãs do material original e aqueles que nunca viram um episódio sequer, podendo até conquistar novos adeptos que terminarão a sessão e procurarão maratonar as seis temporadas existentes. Tendo um engenhoso roteiro que explora vários personagens que dizem muito em seu silêncio e olhares, o longa é um delicioso exemplo de como explorar a rotina de pessoas é campo fértil para cultivar a imaginação.

Bruno Passos
@passosnerds

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