Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 28 de dezembro de 2019

The Witcher (Netflix, 1ª Temporada): moedas bem gastas

Primeira temporada peca em apresentações apressadas e CGI capenga, mas compensa com ótimas coreografias de luta, elenco afiado e um universo impressionante.

O autor Andrzej Sapkowski criou um universo de fantasia de muito sucesso que gerou vários livros, uma série precedida de um filme, ambos produzidos em seu país natal (Polônia), e três jogos para vídeo games, sendo o terceiro de enorme sucesso de crítica e público. A Netflix se aliou à showrunner Lauren Schmidt para trazer esse mundo à vida em “The Witcher“, nova série em live-action estrelada por Henry Cavill e baseada apenas nas obras literárias do autor polonês.

Witchers, ou bruxos, são mutantes: seres humanos que, após uma transformação, se tornam dotados de longa vida e habilidades físicas e mentais sobre-humanas, podendo até mesmo lidar com magia. Considerados monstros pela população em geral, são discriminados e temidos, fato que fornece interessante oportunidade narrativa para se discutir xenofobia, principalmente quando os preconceituosos precisam lidar com sua hipocrisia e contratar os serviços de um bruxo para que ele elimine alguma perigosa ameaça na região, geralmente na forma de criaturas baseadas no folclore polonês.

A discussão sobre do que é realmente feito um monstro está presente na série, e funciona em momentos como o do primeiro episódio, quando o protagonista Geralt de Rivia é literalmente apedrejado e se recusa a revidar para que seus agressores não estejam certos sobre ele. A interpretação de Cavill enriquece este elemento, com seu semblante fechado e exausto por viver novamente aquilo pelo qual já passou inúmeras vezes, ostentando grande quantidade de cicatrizes físicas que espelham as psicológicas.

Cavill, fã dos jogos, perseguiu este papel com afinco. Suportando um longo e árduo período de treinamento, atingiu um físico ainda mais musculoso do que quando interpretou o Superman. O resultado é uma figura de imponência ímpar, que destaca o personagem dos outros e eleva sua figura mítica. O ator também estudou a arte de lutar com espadas ao ponto de dispensar dublês, o que permitiu aos diretores colocar a câmera em ângulos que não esconderam seu rosto e renderam sequências fluidas e com belas coreografias que ilustram com excelência um estilo de luta dançante, orgânico e rítmico. Pena que essa beleza não seja retratada nos embates com criaturas, onde apesar do incrível design dela, o CGI não é dos mais polidos. Vale notar que Cavill também faz uso de um tom de fala mais grave, resultando numa voz altamente similar à do personagem nos jogos de video game, o que deve aquecer os corações dos fãs da mídia.

O Geralt de Cavill é um dos três pilares narrativos desta primeira temporada, sendo os outros dois as personagens Ciri (Freya Allan) e Yennefer (Anya Chalotra). O trio começa em pontos cronológicos diferentes, que vão avançando na narrativa até se mesclarem. Esta escolha se prova um exercício narrativo instigante, mas de difícil digestão. Tudo fica claro em algum momento ou outro, mas o tempo necessário para alguns espectadores sacarem os pontos distintos no tempo pode fazer com que desistam da série antes que tudo se entrelace. Pelo menos, ao julgar pelo season finale, a narrativa deve ser mais direta na já confirmada próxima temporada.

O arco de Yennefer é o mais cativante. Os elementos trazidos à série, inéditos aos livros, não só enriquecem e encorpam o lore deste universo como também oferecem uma boa amostra das motivações da personagem. Há um histórico de abuso e desprezo em seu passado que traz uma complexidade tocante à feiticeira. É uma pena que a força de sua jornada diminui conforme a temporada avança – não pela excelente atuação de Chalotra, mas porque o roteiro falha em construir decentemente um elemento-chave específico que a impele a tomar decisões pessoais impactando vários acontecimentos.

Já Ciri basicamente passa a temporada em busca de Geralt, que ela nunca conheceu, mas sabe que seus destinos estão conectados. Ao mesmo tempo que procura o bruxo, ela precisa fugir das forças nilfgaardianas (o império maligno que está invadindo os outros), que demonstram interesse nela não só pela sua posição política de princesa, mas por elementos sobre-humanos ainda não explorados. Entretanto, sendo uma personagem de tal pertinência, poderia ter havido um cuidado melhor do texto, que por vezes a esquece e resulta numa narrativa inconstante relegando-a a estar mais para um artifício narrativo do que para um ser humano cheio de conflitos. Ao menos a jovem atriz Allan é ótima e faz render as poucas cenas que tentam explorar suas camadas emocionais.

No tocante ao bruxo, cada episódio traz a estrutura clássica de “um problema por vez”, quase um procedural. Em suas aventuras, conhecemos um pouco mais sobre ele, por vezes até tendo alguns relances de seu passado. Crê-se que os bruxos são desprovidos de emoção, o que o protagonista vai mostrando ser apenas crendice e que os longos anos de decepção e preconceito o moldaram como alguém com grandes defesas psicológicas, mas também com inúmeras vulnerabilidades por trás delas. Geralt não tem um arco narrativo de profundas mudanças nesta temporada, que procura mais explorá-lo e apresentá-lo. Infelizmente há uma pressa descabida em alguns quesitos, como quando a série procura mostrar sua conexão com Yennefer, cuja intensidade entre os dois vem apenas das atuações, não do roteiro.

Outro problema é que a série não estabelece as regras sobre magia de maneira suficientemente clara, sendo apenas um dos vários elementos confusos na trama. Isso é especialmente problemático quando se percebe o peso que a magia tem nas decisões políticas dos reinos. A narrativa desta temporada é bastante fragmentada, talvez pela estrutura de contos literários na qual se baseou, com várias explicações expositivas e aceleradas, fazendo com que importantes informações acabem passando batidas.

A introdução do bardo Jaskier (Joey Batey) traz um bom alívio cômico assim como um carisma necessário que equilibra bem a sisudez de Geralt e entrega canções verdadeiramente agradáveis junto com algumas pistas sobre o posicionamento cronológico dos personagens. Sua presença no quinto episódio aumenta a sensação de uma clássica aventura de RPG e auxilia na entrega de um final marcante.

A série, apesar de uma boa primeira temporada, não alcança todo o potencial que seu universo oferece, com narrativa um tanto confusa perante alguns elementos importantes e se focando mais em apresentar personagens do que em desenvolvê-los. Entretanto, o que foi apresentado promete muito agora que a narrativa estabeleceu componentes narrativos relevantes para o futuro. Com um universo cativante, atores dedicados e um claro amor pelo material original, “The Witcher” não chegou, mas tem plena capacidade de atingir uma grande obra de fantasia criada para o audiovisual.

Bruno Passos
@passosnerds

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