Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Paradise em Chamas (Netflix, 2019): traumas da mudança climática

Documentário traz assustadores relatos de sobreviventes do pior incêndio a devastar a Califórnia nos últimos cem anos. Para isso, mesclam-se entrevistas, estatísticas e vídeos feitos por moradores da cidade Paradise, que deixou de existir.

Em 2018, um incêndio colossal devastou boa parte do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, arrasando por completo a cidade de Paradise. O documentário “Paradise em Chamas”, lançado na Netflix, traz depoimentos de sobreviventes de um dia terrível e aterrorizante, que escancara como a violência e a frequência desses desastres vêm aumentando conforme o clima sofre alterações.

O incêndio chamado de Camp Fire matou oitenta e cinco pessoas e deixou milhares sem ter onde morar, sendo o pior dos últimos cem anos. Ler tais estatísticas choca, mas não horroriza tanto quanto as filmagens feitas por aqueles que estavam tentando escapar do perigo. Os diretores Drea Cooper e Zackary Canepari usam trinta e nove minutos para mesclar muito bem esses vídeos aos relatos de sobreviventes, sejam eles moradores locais ou policiais e bombeiros que tentavam resgatar todos que conseguissem.

Por meio de uma eficiente montagem, a combinação de elementos consegue produzir dois resultados vitais para que o público se identifique com quem está em cena: uma é contar os eventos como aconteceram e a outra é ilustrar o impacto emocional que precisar ser encarado pelos remanescentes. Os diretores colocam horários na tela para indicar a sequência de eventos, sendo chocante perceber a frequência assustadora com que os telefones da emergência começaram a tocar, deixando clara a escala nunca antes vista da ameaça. Da primeira ligação avisando que um incêndio foi avistado até os operadores começarem a comunicar as pessoas que ligavam para evacuar o lugar, passou-se apenas uma hora e meia.

Conforme as entrevistas vão revelando as mudanças na cor do céu – que ficou preto como a noite em plena manhã devido à espessa fumaça, e laranja no horizonte porque as chamas se aproximavam – o filme mostra as filmagens feitas por indivíduos pegos de surpresa na cidade, tentando entender o que estava acontecendo. O relato de duas professoras que tentaram fugir num ônibus cheio de crianças e começaram a rezar para morrer por inalar fumaça antes de morrerem queimadas é particularmente agoniante. A marca psicológica deixada em quem teve que fazer esse tipo de prece é nítida, doída e vai apertar o coração de qualquer espectador.

Revisitar esse dia nos depoimentos é bastante doloroso para os entrevistados, podendo indicar como trauma é visível em cada um deles e como merecem admiração pela coragem de conversar sobre aquele o ocorrido. Nota-se a dor em cada voz e em cada rosto e a dificuldade de terminar uma exposição  sem cair no choro. Testemunhos de um policial dizendo que chegou a tal ponto de desespero que o levou a tomar decisões que ainda o assombram e de outros que revelam o que – ou ainda mais triste, quem – não puderam salvar são terríveis.

Drea Cooper e Zackary Canepari constroem a tensão com uma montagem lúcida, que espelha o horror crescente do perigo sentido. Do céu negro e da chuva de cinzas aos galhos em brasa caindo do céu, a sensação de que algo ameaçador e agourento se aproxima e qualquer chance de escapar vai diminuindo progressivamente é mais assustadora do que qualquer monstro que Hollywood já inventou.

“Paradise em Chamas” é uma obra que acerta em cheio em fazer com que o espectador entenda, pelo menos um pouco, as feridas emocionais e psicológicas daqueles que passaram por um nível de terror e medo que os marcam para sempre. Além disso, consegue ilustrar como já não estamos conseguindo combater com eficiência as consequências das profundas mudanças climáticas pelas quais o mundo vem passando há anos. O micro consegue nos fazer pensar no macro, algo pelo qual o documentário merece ser parabenizado.

Bruno Passos
@passosnerds

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