Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de novembro de 2019

Cascavel (Netflix, 2019): esquemático, estranho e débil

Terror da Netflix se perde em meio a decisões temáticas e estéticas aleatórias e esquemáticas, que criam um filme sem energia e tensão.

Uma mãe colocada em uma situação limite para proteger a filha pode ser uma premissa de momentos assustadores de tensão. Some-se a isso a ambientação com potencial interessante nas áreas rurais do Texas para esperar um filme atrativo. Porém, não é o que entrega “Cascavel“, uma produção original Netflix que desperdiça suas possibilidades devido ao roteiro formulaico e à narrativa excessivamente bizarra e sem energia. Mesmo com a curta duração de menos de uma hora e meia, ficam flagrantes os numerosos pecados no projeto dirigido por Zak Hilditch, também responsável pelo suspense “1922″.

A história se inicia acompanhando mãe e filha viajando pelas estradas sulistas do Texas. Não se sabe exatamente para onde estão indo nem como são as vidas de Katrina e de Clara, apenas se vê a dinâmica comum das duas personagens. Em determinado momento da viagem, fogem do engarrafamento seguindo por um caminho paralelo e é ali que a criança é picada por uma cobra mortal. Desesperada por ajuda, recorre a uma misteriosa mulher  para salvar a menina. Em retribuição ao auxílio prestado, a mãe precisa matar um desconhecido antes do pôr do sol.

Antes do conflito principal se sobressair, algumas passagens iniciais da trama já se revelam esquemáticos ou inverossímeis: respectivamente, o diálogo entre a protagonista e a criança sobre jamais poder justificar a violência que sugere como, mais tarde, será preciso agir violentamente; e o fato de a progenitora deixar sua filha com uma estranha logo após o ataque da cascavel. Não passam muitos minutos para que o próprio enredo se desenvolva de maneira questionável, encadeando sequências aleatórias sem coerência entre si. A entrada da dimensão sobrenatural é um exemplo claro dessa condição, já que surge desprovida de sentido, não é trabalhada pelo roteiro e leva Katrina a procurar notícias de assassinatos na região sem qualquer propósito.

Desse modo, as imagens antinaturais que aparecem não tem razão de ser nem se relacionam à jornada de salvamento de Clara. A princípio, poderiam servir para inserir a questão da morte à narrativa e expor os sacrifícios envolvidos nos dilemas da protagonista, contudo se manifestam abruptamente como se bastasse empilhar fatos estranhos para gerar desconforto nos espectadores. A artificialidade do texto continua à medida que o tempo passa e novos personagens surgem com o objetivo de levantar dúvidas sobre quem poderia ser assassinado como pagamento pela alma salva – enquanto Katrina interage com uma família que vê seu pai internado no hospital e com um casal constantemente em atrito, os novos embates são apressadamente inseridos e o público não se importa com a ameaça que ronda aquelas pessoas. Analogamente, o desenvolvimento do arco dramático central sofre com o excessivo e nada justificado estranhamento observado nos efeitos visuais e na trilha sonora: a computação gráfica em torno da criação da cobra é absolutamente artificial e a trilha instrumental é intrusiva, aparecendo em cada mínimo instante para forçar a contínua sensação de inquietação.

Além disso, as demais tentativas de fundamentar o terror da premissa fracassam por não ter uma protagonista que sustente o filme. A construção da mulher é precária, não conseguindo explicar qual é a função da troca de mensagens com sua própria genitora e dos textos motivacionais que ouve em podcasts. A partir daí, sua evolução também carrega diversos vazios e imperfeições, por trazer mudanças rápidas e inverossímeis demais – exemplificadas pelas variações inesperadas de personalidade e pela inexistência de alguma marca do embate interior travado entre sua moral e o medo frente à possibilidade da morte de Clara. Tais problemas igualmente transparecem na atuação de Carmen Ejogo que, até consegue demonstrar a preocupação que sente com o destino da menina, mas não convence como uma mulher desesperada diante de acontecimentos sobrenaturais ao seu redor e da urgência da missão.

Justamente em relação ao tempo se destaca outra deficiência da produção: a falta de uma sensação de emergência evocada textualmente pelo roteiro ao definir o pôr do sol como limite para o cumprimento do sacrifício. Em termos estilísticos, nem a direção nem a montagem imprimem um ritmo acelerado e angustiante como deveriam, uma vez que faltam energia dramática e timing narrativo para construir a tensão e sobram planos gerais contemplativos das paisagens naturais. Ademais, outros planos enfraquecem o  andamento da história ao carecer de significado dramatúrgico, como o enquadramento de uma pintura de lobo, ou falhar em transmitir o impacto necessário, como a apresentação do conflito ser filmada com um enquadramento lateral, distante  e anticlimático.

Não satisfeito em frustrar a progressão da narrativa e da personagem principal, “Cascavel” também peca no encerramento. O clímax do terceiro ato é resolvido com um forçado deus ex machina e uma mensagem é difundida somente nos minutos finais – a ideia de que, por mais que se avance na vida, o passado pode te perseguir tem uma analogia visual interessante concebida através do retrovisor do carro, entretanto ela é introduzida com pouco tempo disponível e menor impacto. Ao final, o plot, que aparentava potência, se resume a uma coleção de decisões estranhas, esquemáticas e vazias em si mesmas.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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