Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A Fera na Selva (2017): sobre amor e medo

Texto de Henry James, adaptado pelos atores Paulo Betti e Eliane Giardini, conta a história de um homem que, por medo, esquece de ser feliz.

Dirigido pelo ator Paulo Betti, “A Fera na Selva” é a adaptação da novela de mesmo nome escrita pelo inglês Henry James em 1903. Na versão cinematográfica, acompanhamos décadas nas vidas de João (Paulo Betti) e Maria (Eliane Giardini), transcorridas na expectativa de que um grande acontecimento na existência do homem estivesse na iminência de acontecer. Essa tal fera à espreita do sujeito seria, segundo ele, “um acontecimento terrível, horroroso” que o mantém cativo em constante estado de tensão. Tendo confessado seu medo à Maria em um fortuito passeio de barco anos antes, eles se reencontram e a mulher se dispõe a acompanhá-lo nessa angustiante espera. Muitas décadas em que os dois, juntos, vivem sob a esperança desse destino tão cruel.

Realizado com muito capricho pelo diretor e sua equipe, incluindo o montador Eduardo Escorel e seu irmão, Lauro, na fotografia, a adaptação da novela inglesa encontra um canto improvável no interior de São Paulo para se desenvolver. Filmado na região de Sorocaba, a história ganha a singeleza da região para compor um drama intimamente psicológico, afastando-se do horror que notabilizara os textos de James. O roteiro é assinado pelos dois atores principais e também por Rafael Romão Silva, mas o projeto teve origem nos palcos, alguns anos antes, também conduzido por Paulo e Eliane. Segundo Betti, o processo de filmagem contou com a colaboração de estudantes da região e moradores locais que participaram do trabalho.

O texto, sobretudo em seus diálogos, é deveras teatral e ainda que perca na naturalidade, preserva a qualidade dramatúrgica do enredo. O original de James é conhecido pelas sutilezas da linguagem e, por isso, considerado de difícil adaptação. Há ainda uma narração conduzida por José Meyer que amarra as intenções da trama. Embora seja arriscado contar com muitas narrações, já que no cinema é melhor mostrar do que falar, aqui o recurso tem uma função literária, como marcação do texto e condução da história.

O filme não tem pretensões de ser grandioso ou pirotécnico em seu desenvolvimento, nem ideológico no conteúdo. Antes tenta tirar o máximo de uma trama mínima em uma narrativa que aborda temas existenciais profundos, como  a solidão, a morte, o amor e o medo. A “fera na selva” se transforma, assim, em metáfora das angústias que podem afetar a todos, das carências e terrores que nos assombram e de tudo o mais emocional que paralisa nossas vidas. Portanto, não se buscam as razões conjunturais para o mal-estar da civilização, mas se mergulha psicologicamente nas mais intensas inquietudes do ser.

Louvável são os questionamentos tão potentes levados à tela em um enredo guiado por dois atores mais velhos, visando, aparentemente, a um público também mais velho. O homem amedrontado, ainda que bem sucedido, interpretado por Betti traduz ainda uma pequeneza da figura masculina estereotipada que se prova insuficiente, vazia. Contendo tais elementos a produção nos ensina, assim, que nunca é tarde para mergulhar em nossa própria subjetividade, destacando a arte como potência que nos leva a essa reflexão a partir dos afetos que provoca.

O medo acachapante que impede João de desfrutar seu presente, na expectativa constante de um porvir trágico, é uma lição que pode servir aos espectadores de muitas formas nos nossos dias. Todos os medos que nos rodeiam, internos ou externos, podem ser lidos a partir de João: ele desperdiça a vida e não enxerga o que tem diante de si, na virtualidade de uma possibilidade nefasta, ao invés de entregar-se corajosamente às suas vivências, ao amor e a si mesmo. Pobre João que, mesmo tendo sido professor e depois livreiro junto com Maria, aparentemente nunca leu Guimarães Rosa, que nos ensina que “o que a vida pede da gente é coragem”.

Vinícius Volcof
@volcof

Compartilhe