Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Democrats (2014): a morte e o renascimento das democracias

Documentário revela ao mundo a luta do Zimbabuê para restaurar sua democracia plenamente, através da elaboração de uma nova Constituição.

Democrats” é um documentário, agora disponível na Netflix, que acompanha três anos do tumultuado processo de elaboração de uma nova Constituição no Zimbábue, no sudoeste da África, que fora comandado por mais de três décadas pelo ditador Robert Mugabe. Habilmente construído pela antropóloga e documentarista dinamarquesa Camilla Nielsson, o filme é um documento histórico de uma árdua trajetória de recuperação democrática daquele povo. Não obstante ter vivido séculos de dominação colonial inglesa, foi vítima de uma cleptocracia poderosa que, fantasiada de movimento revolucionário socialista, garantia seu enriquecimento pessoal enquanto levava o país à falência econômica com os maiores níveis de inflação do mundo (cerca de 22.000.00% ao ano).

A narrativa acompanha duas figuras centrais dos bastidores da política local, dispostos nos dois lados da fronteira dessa disputa que teria o poder de mudar as feições políticas da nação: de um lado, o combativo e sereno Douglas Mwonzora, advogado do partido de oposição MDC-T (Movimento pela Mudança Democrática, na sigla em inglês); do outro, o carismático Paul Mangwana, famoso advogado do país, representante do governo Mugabe e de seu partido, o ZANU-PF (União Nacional Africana pelo Zimbábue). Ambos eram membros da comissão estabelecida pela presidência, após forte pressão local e da comunidade internacional, para elaboração de uma Constituição livre e democrática, formulada a partir das vontades do povo.

Na primeira parte do documentário, essas duas figuras são apresentadas como opositoras em um embate cujo resultado oferecia à nação a possibilidade de renovação política e segurança jurídica inéditas ou a continuidade de um sistema autoritário, corrupto e com feições racistas. Viajando pelas comunidades do país realizando audições constitucionais, Mwonzora e o MDC-T logo percebem as estratégias do governo Mugabe para controlar a situação, por meio de lobby ou de ostensiva intimidação, a fim de aprovar uma Constituição que lhe fosse mais favorável. Já Paul é, inicialmente, apresentado como um notório defensor do regime. Seu carisma chega a ser quase encantador, se não deixasse transparecer um homem constrangido, vítima das mais diversas pressões institucionais e que chega mesmo a admitir, em um momento de maior intimidade com a câmera, que trabalha pelo sistema vigente por saber que não há como derrubá-lo.

Mesmo que nossa angústia não diminua, representada pelas expressões desoladas de Mwonzora ao longo do processo, entendemos porque tantas opiniões benéficas aos governantes são dadas pela própria população no momento único em que elaboram sua Constituição. Sustentado pelo uso da força do Estado como ferramenta de intimidação e controle sociais, o governo aparecia sabotando tudo a todo momento. Durante algumas reuniões, a violência resultou em mortes; em outras, Mwonzora e sua equipe, incluindo a de filmagem, são expulsos de comunidades controladas pelo partido de situação.

A escalada da crise fez com que a criação da carta constitucional para o Zimbábue atrasasse em muitos meses, coagindo ainda mais os membros do Comitê Especial, ligados por Mwonzora e Mangwana. Ainda que, ao final, o próprio presidente Mugabe critique os atrasos nos trabalhos, fica claro que, na maioria das vezes, eles foram causados por ações de sabotagem do próprio sistema político: violência, a difamação, como a prisão de Mwonzora ocorrida no meio do processo, ou a impensável acusação de que Paul Mangwana teria se vendido aos opositores e traído o regime.

É esse último ponto que garante a virada na trama, quando o ferrenho advogado e Ministro da Informação passa a ser perseguido publicamente como um traidor de seu líder e, portanto, de seu país. A acusação não tem o mesmo peso que teria aqui e significava que Mangwana tinha a cabeça a prêmio. Até mesmo a polícia e o exército poderiam assassiná-lo. O impacto sobre Paul é notável até mesmo em sua postura corporal. Seu constante bom humor desaparece e até os opositores políticos, como Mwonzora, se compadecem da situação. Ainda assim, o advogado permanece impassível na defesa dos governantes para a elaboração da Constituição, especialmente contraa proibição de presidentes anteriores. que já houvessem ocupado o cargo por dez anos (dois mandatos de cinco anos), de disputar novas eleições. Esse impedimento, que motivou as acusações de traidor sobre Mangwana, impediria que Mugabe pudesse concorrer e seria combatido pelo governo de todas as maneiras.

O episódio, brilhantemente conduzido pela montagem do documentário, acaba por nos revelar que Douglas e Paul não são figuras tão diferentes assim. Ambos cumpriam, naquela conjuntura delicada de restrições democráticas, o papel de garantir as condições de negociação que protegessem o procedimento constitucional. O objetivo final de ambos era outra carta política e eles compreendiam que eram peças que garantiam que o processo não ruísse, mesmo que, em muitos momentos, estivesse prestes a ocorrer. Percebe-se, assim, que mais delicado do que postar-se contra o autoritarismo pode ser tentar promover mudanças dentro dele. A linha tênue sobre a qual pisa Paul Mwonzora ao longo de todo o filme faz dele uma espécie de herói nacional, tanto quanto um pária. Entre a leniência com um regime criminoso e a defesa de novas regras constitucionais, Mwonzora é desses personagens complexos que só as boas narrativas constroem.

O documentário de Camilla Nielsson, vencedor do festival de Tribeca em 2015, revela-nos os percalços por quais passam algumas democracias ao redor do mundo, muito antes das recentes crises de representação que afetam alguns países europeus, os EUA e mesmo o Brasil. Não apenas a corrupção, mas todo o sistema jurídico-burocrático, quando capturados por governantes mal intencionados, pode se colocar contra os direitos fundamentais de uma população. Depois de algum tempo,  ela chega mesmo a esquecer que merecem esses direitos, fazendo com que os povos deixem de acreditar na democracia.

Vinícius Volcof
@volcof

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