Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Fantasmas de Sugar Land (Netflix, 2019): extremos da humanidade

Premiado em Sundance, o curta da Netflix extrai uma interessante reflexão sobre uma visão intimista do Estado Islâmico.

Não há como ignorar as diferentes vantagens proporcionadas pela internet, que revolucionaram a comunicação humana. Capaz de permitir o contato entre as regiões mais distantes do planeta, esse ambiente virtual fornece incontáveis ferramentas para a humanidade, proporcionando a globalização de opiniões e democratizando o acesso à informação. Diante de incríveis evoluções, entretanto, seria injusto ignorar a existência de diversos perigos e males da contemporaneidade. Aproveitando-se da falta de barreiras estabelecidas na rede, muitas correntes violentas tendem a se disseminar através das redes sociais, por vezes refletindo em movimentos que vão além dos computadores. É o caso, por exemplo, do abominável Estado Islâmico, célula terrorista cujos recrutamentos online têm se amplificado cada vez mais e que é grande temática do impactante documentário da Netflix, “Fantasmas de Sugar Land“.

Crescido na pequenina e estadunidense Sugar Land, “Mark” (codinome dado à figura da qual a produção trata) nunca esteve totalmente à vontade em seu lar. Um dos poucos afrodescendentes de sua cidade natal, ele sempre se sentiu excluído dos círculos sociais ao seu redor, descobrindo em um grupo de muçulmanos os únicos em quem podia confiar. A partir daí, temeroso por manter o rumo encontrado em sua vida, fez do islamismo uma verdadeira paixão, buscando com afinco respostas religiosas que, muitas vezes, seus colegas eram incapazes de fornecer. Com o tempo, no entanto, a admiração transformou-se em extremismo, e, alimentada por instrumentos virtuais, a distorção dos valores de Mark se tornou sua porta de entrada para o EI. Ele se uniria ao grupo em 2015. Embora possa soar desta forma, tal história infelizmente está longe de ser ficcional, e é sobre isso que discutem os antigos parceiros de Warren Clark (verdadeiro nome do jovem adulto texano) enquanto vestem máscaras de personagens da cultura pop.

Entrevistados pelo diretor paquistanês Bassam Tariq (“These Birds Walk“), os homens mascarados tentam, ao longo dos vinte minutos da produção, entender a sombria virada de seu companheiro, procurando os lastimáveis motivos que podem levar um ser humano a escolher o terrorismo. Sendo assim, é impressionante o quanto o curta-metragem consegue extrair de sua reduzida duração, construindo um plausível panorama para sustentar o terrível fenômeno. Solitário, “Mark” interpretou que precisava provar sua dignidade – talvez por ser visto, nas palavras dos entrevistados, como um “islã de pele escura”- para se manter junto dos amigos muçulmanos, adotando a religião de forma bastante ortodoxa. Todavia, à medida que amplificou seu contato, o arcaico estigma mantido contra árabes por uma parcela dos americanos, o levou a incorporar traços mais radicais em sua ortodoxia.

Embora muito interessante, é importante observar que a narrativa construída pela precisa edição de Thomas Niles se sustenta em um série de suposições, baseada nas observações contidas nos depoimentos dos rapazes. O fato, entretanto, não diminui em nada a experiência, visto que é possível identificar na trajetória de Clark (alguém que vai da solidão à loucura nos subúrbios do Texas) os sintomas gerais que conduzem a pessoas a optar por medidas extremas. Como se não bastasse, a obra deixa claro que a internet atua como grande combustível para tais comportamentos, ambiente ilimitado que possibilita a interação com os mais diversos grupos e a expressão das mais tóxicas visões de mundo.

Entre os vários acertos, vale destacar ainda a personalidade concedida pelo uso das máscaras, ilustrações que retratam de maneira poética a fragilidade do espírito humano: ele é facilmente influenciado a ir do bem para o mal, conforme os rostos de grandes heróis e vilões ali mostrados. Porém, seria injusto ignorar que a ampliação do círculo de entrevistados enriqueceria ainda mais o conteúdo, já que alguns parentes de Mark, por exemplo, poderiam fornecer maiores detalhes sobre sua condição.

De toda forma, “Fantasmas de Sugar Land” é um curioso e impactante curta da Netflix que consegue transmitir muito em tão pouco tempo. Relevante, adota uma bem-vinda nova abordagem acerca do Estado Islâmico, mostrando como em tempos de fragilidade e de mal uso da internet, muitas pessoas estão suscetíveis à perversidade.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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