Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Entre Mundos (2018): absurdo crescente

Maria Pulera e Nicolas Cage criam um projeto incapaz de lidar com o estranhamento que transmite e, consequentemente, apresenta pouco impacto sério nos espectadores.

Nicolas Cage é um ator curioso. Contudo, o vencedor do Oscar por “Despedida em Las Vegas” e protagonista de bons filmes como “Adaptação” e “Arizona Nunca Mais” é lembrado nos últimos anos por seus papeis estranhos e trabalhos de gosto duvidoso. Filmes como “O Sacrifício“, “O Vidente” e, mais recentemente, “Entre Mundos” criaram uma persona cômica e ridicularizada para ele. Este projeto em sua carreira faz isso ao não conciliar o absurdo do enredo às reviravoltas da narrativa.

O ponto de partida é Joe (Nicolas Cage), um motorista de caminhão assombrado pelas trágicas mortes de sua esposa e filha. Numa noite em que repete seu ciclo de bebedeira e viagem pela estrada, se depara com Julie (Franka Potente), uma mulher com dons espirituais que sofre com o coma da filha Billie (Penelope Mitchell) após um acidente de moto. Ajudada por Joe, Julie reencontra a alma perdida da filha numa outra dimensão, salvando sua vida. A partir daí, os três personagens começam a viver juntos e criam relações que fogem do convencional.

A começar pelo estilo da trama, já se nota como as tentativas de criar momentos absurdos soam apelativas e desvinculadas de uma função narrativa. Cada um deles pertence a um gênero, subgênero ou tom particular, desde o nonsense, o drama até o sci fi: o sufocamento violento desperta as habilidades incomuns de Julie, o relacionamento entre ela e Joe começa abruptamente, as dores dos personagens aparecem apenas pontualmente e a demonstração dos poderes da mulher não possui nada fantástico visualmente. A criação e o encadeamento dessas situações têm como único efeito o afastamento do público, que não consegue imergir na sucessão de estranhamentos artificiais. A própria decupagem das cenas feita pela diretora Maria Pulera contribui para a sensação de exagero, já que os planos e a mise-en-scène constroem um humor politicamente incorreto involuntário (por exemplo, o primeiro estrangulamento de Julie).

Não existem apenas deficiências nos elementos dramáticos isoladamente, mas também no desenvolvimento geral da narrativa. A alternância entre os gêneros ou estilos não é orgânica nem articulada, como se observa na pequena ligação entre o nonsense e o sci fi, na inexpressiva penetração do fantástico nos dramas dos personagens, nas inesperadas doses de erotismo colocadas esporadicamente e nas constrangedoras cenas de ação quando a ficção retorna para a linha de frente do filme. Dessa forma, boa parte do segundo ato não apresenta um conflito claro e se concentra somente no cotidiano dos personagens. Quando o conflito aparece, o problema não é completamente resolvido, uma vez que diálogos expositivos explicam princípios do universo fílmico e reviravoltas da trama que poderiam facilmente ser mostrados visualmente.

A dimensão apelativa transborda do roteiro e da estética e atinge a performance do elenco. Em especial, a atuação de Nicolas Cage é muito influenciada pelos exageros corporais e expressivos que podem ser encontrados em outros trabalhos do ator, para o bem ou para o mal. Quando dirigido meticulosamente por cineastas que sabem explorar os roupantes enlouquecidos, ele trabalha os trejeitos físicos e as expressões faciais exageradas dentro de um propósito dramático reconhecível. No entanto, em “Entre Mundos“, falta justificativa narrativa para a movimentação corporal incomum do ator, para mudanças de olhares nada sutis e reveladoras de espanto ou choque e para as inflexões vocais decorrentes de engasgos ou outros reflexos biológicos. São tantos aspectos chamativos que a evolução do personagem fica prejudicada, saltando da grosseria inicial para uma bondade altruísta e chegando a um desespero aflitivo, como se uma chave imaginária fosse ligada em sua cabeça obrigando-o a se transformar rapidamente.

O restante do elenco pode até não ser comprometido pela apelação dramática, mas também sofre com problemas de roteiro e de direção de atores. Franka Potente não convence como uma mulher portadora de habilidades sobrenaturais nem como uma mãe angustiada pela suposta distância que diz ter da filha – ela simplesmente se mostra como uma personagem comum vivendo sua rotina regular e mal demonstrando sentir a partida do marido ou desentendimentos com Billie (diálogos expositivos tentam corrigir essa carência). Já Penelope Mitchell tem poucos subsídios para criar uma personagem que vai se transformando ao longo da produção, não podendo mostrar nem vulnerabilidade nem a capacidade manipulativa sugerida pelo roteiro. Ao invés de oferecer sequências que evidenciem a mudança de comportamento da personagem, o roteiro novamente prefere investir em diálogos expositivos para escancarar algo que deveria ser gradual.

À medida que o filme transcorre, mais e mais exemplos se somam para confirmar a escala crescente de falhas na utilização do absurdo e das propostas incomuns. Há deficiências técnicas na composição e no encadeamento dos planos, verificadas em jump cuts incoerentes e nas transições abruptas na montagem das cenas. Porém, acima de tudo, os envolvidos no projeto acabam por criar um artificialismo e uma distância tão grandes dos espectadores que a história se esvazia. Assim, as relações familiares e os traumas do passado cedem lugar ao absurdo vazio de significados.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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