Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Inocência Roubada (2018): viagem dentro do trauma e da dor

O premiado filme francês vai no âmago da dor ao retratar a libertação de uma vítima de pedofilia que decide, após muitos anos, relatar pela primeira vez a violência que sofreu.

“Eu não falo, eu danço”. Assim, Odette, personagem vivida pela atriz e bailarina Andréa Bescond, estabelece a linguagem de “Inocência Roubada”. O filme é uma adaptação da peça solo estrelada por Bescond e chamada “Les Chatouilles ou La Danse de La Colère”, que transita por diversos estilos de dança como o ballet clássico, contemporâneo, stiletto e krump. A história contada é inspirada pelo drama real da atriz, que foi vítima de pedofilia por um amigo de sua família.

No longa, a menina Odette (Cyrille Mairesse), doce e sorridente, gosta de desenhar e brincar de bonecas e seu grande sonho é ser a primeira bailarina num importante teatro da França. Porém, sua inocência se corrompe quando Gilbert Miguié (Pierre Deladonchamps), um amigo da família, se aproveita de sua ingenuidade para cometer violência sexual. A história da protagonista é narrada através de suas sessões de psicanálise. Mergulhamos no inconsciente da bailarina, ao explorar memórias e fantasias que flertam com elementos surrealistas, entre os quais nem sempre é distinguível o real das construções mentais que ela utiliza para enfrentar o trauma.

Diversas escolhas artísticas contrastam o que se passa dentro e fora da mente da protagonista. As cenas no consultório da terapeuta têm uma iluminação mais sóbria, câmera estática e cortes simples. Já os relatos de Odette abusam de combinações criativas na montagem – ditando muito bem o ritmo do filme – com cortes invisíveis, match cuts (quando o corte combina dois planos parecidos em uma transição) e J cuts (quando o áudio da cena seguinte invade a cena atual). Tais recursos criam alternâncias entre as cenas da personagem adulta e criança e da fantasia e da realidade, assim como adicionam um frenesi à confusão mental que a protagonista vivencia quando está sob o uso de drogas. Além disso, foram usadas câmeras de ombro e travellings, que conferem às cenas um pouco da intensidade da mente traumatizada da personagem.

A montagem também é aliada quando o roteiro quer balancear o drama da vida da menina. Utiliza o humor tanto para suceder cenas mais pesadas, suavizando-as, quanto para antecedê-las, ajudando a adicionar uma carga mais dramática às memórias da infância que virão a seguir. O espectador se sente presente nos episódios sofridos pela criança, sendo as cenas tratadas com muito respeito, usando de forma sugestiva planos fechados para preservar a atriz-mirim e eximi-la de contracenar com Deladonchamps quando seu personagem pratica os atos de abuso. As cenas deixam o drama falar por si, bem iluminadas e marcadas por uma paleta de cores que destaca o azul, simbolizando a melancolia e introspecção da vítima.

A personagem verbaliza o trauma pela primeira vez em uma sessão de terapia, muitos anos depois do ocorrido. A menina Odette começa o filme sumindo pela porta do banheiro com seu violador na memória da mulher Odette, mas não a acompanhamos. Quando a criança entrou por aquela porta, nunca mais saiu. Ela perde a doçura do olhar, a verborragia e o sorriso fácil, levando as mãos perto da boca sempre que é oprimida pela mãe, numa tentativa de conter seu segredo. Mas através da dança, sua raiva e suas dores finalmente saem e Andrea entrega esses sentimentos na crueza de sua atuação, íntima de sua personagem e de suas marcas.

Há quem espere que a resolução de um trauma tão profundo seja o confronto, a justiça, mas se enganam. A história de Odette não é sobre o estupro ou sobre a sua relação com os pais. Não é sobre Gilbert ou sobre reparar o irreparável, e sim uma jornada sobre o trauma, o reencontro da protagonista com sua self, a criança que ela abandonou atrás da porta do banheiro. É sobre a criança. O elemento mais importante e o mais ignorado no meio dessa monstruosidade. E o filme acerta nas escolhas artísticas das cenas do desfecho, pois opta por sensibilidade, pelo não dizer com palavras – estas não são necessárias. Odette não fala, Odette dança. Em cada movimento vemos sua história sendo expelida, as palavras que lhe foram roubadas, reprimidas, traduzidas na intensidade da sua arte.

Através da decisão de buscar a terapia, Odette alcança uma experiência catártica e libertadora ao olhar para o próprio inconsciente. O longa francês não apenas conscientiza sobre um problema que, infelizmente, ainda é muito comum na sociedade, mas aborda o trauma com muito respeito, mostrando que é possível seguir em frente ao se empoderar de sua dor e de sua história.

Tayana Teister
@tayteister

Compartilhe