Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Desculpe Te Incomodar (2018): sátira da vida moderna

Incomum e marcada pela bizarrice, produção acerta em cheio na crítica ao capitalismo, utilizando como foco o trabalho escravo.

Condições trabalhistas degradantes, jornada exaustiva, atividades forçadas e servidão por dívida são alguns elementos que conjuram o que nos referimos, hoje em dia, como trabalho análogo à escravidão. A Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, diz abolir a escravidão, porém, mais de 100 anos se passaram e o mercado do trabalho escravo permanece superaquecido, recrutando todo e qualquer tipo de ser humano: seja aquele que ávido por ter a casa própria, o carro top de linha e uma vida sofisticada cede aos encantos de filosofias meritocráticas, ou aquele que por desespero e necessidade se dispõe a situações humilhantes em troca de um prato de comida e de um teto para morar. Em “Desculpe Te Incomodar”, o estreante diretor e roteirista Boots Riley exemplifica esse tipo de ocupação que “seduz” o homem através de uma crítica afiada, grifada por uma linguagem atípica e muito criativa.

Após conseguir um emprego como operador de telemarketing, Cassius Green (LaKeith Stanfield, “Entre Facas e Segredos”) descobre um artifício mágico que o leva, em pouco tempo, a ser o destaque de uma agência em greve iminente, chamando a atenção dos superiores. Transformado num ligador do poder, Cassius entra num universo repleto de ganância e interesses sórdidos, liderado pelo empresário megalomaníaca Steven Lift (Armie Hammer, “Atentado ao Hotel Taj Mahal”). Estabelecendo sua narrativa numa versão alternativa atual de Oakland, na Califórnia, o roteiro de Riley destila inventividade com sua linguagem fantasiosa, jogando luz sobre um tema ainda em voga nos dias de hoje. Ao se preocupar muito pouco se vai ou não chegar ao grande público, ele se importa somente em não se levar a sério e para isso conta com personagens bem construídos.

LaKeith Stanfield confere ao seu Cassius Green todo o peso imposto pela dificuldade de um negro coexistir em território majoritariamente branco e, por isso, ter que se sujeitar a subempregos caso queira ser alguém na vida. Sua postura curvada, por exemplo, diz muito sobre essa carga que não deveria existir, mas que ainda insiste em atrasar nossa civilização. A fala mansa e quase sempre acuada ao se comunicar com o interlocutor também acompanham a rica composição do personagem que, graças ao roteiro preciso e mordaz de Boots Riley, exibe adiante um arco dramático muito bem delineado e surpreendente. Os coadjuvantes que cercam a figura central, alguns já tarimbados como Armie Hammer e Tessa Thompson (“Vingadores: Ultimato”), surgem em papéis diferentes de outros realizados – no entanto, caricatos até demais – e cumprem uma função burocrática e sem tanto valor.

A partir de uma linguagem visual imaginativa (indicar a proximidade do atendente de telemarketing o transportando para o mesmo plano do cliente é uma jogada simples e jocosa que poderia ser mais aproveitada pela narrativa) e de um ritmo efervescente em virtude da montagem ágil e coerente de Terel Gibson (“Música, Amigos e Festa”), o filme ganha também ao transitar entre tons diferentes de maneira pouco usual. Embora não ocorra com extrema fluidez – e talvez nesse ponto o espectador sinta o impacto -, transformar uma compreensível comédia de escritório num tipo de terror distópico se revela uma manobra ousada da direção. Abraçando-se fortemente o lado estapafúrdio de seu argumento, são apresentados eventos bem próximos da realidade que mantém o público concentrado graças ao desconforto causado pela sensação de não conseguir distinguir a ficção da vida real.

Apesar da boa vontade e da criatividade em elaborar piadas com vários subtemas (relações trabalhistas, opressão sistemática, microagressões raciais), muitas delas acabam não surtindo efeito, porque o exagero ao disparar graça para todos os lados extrai a força do desenvolvimento central e resulta numa inevitável dispersão. Munido por excelentes críticas sociais, algumas delas estacionadas em ideias e falhas na conclusão, e uma direção crua, “Desculpe Te Incomodar” ao menos se mostra corajoso e original o bastante para tirar o espectador de sua zona de conforto. Além disso, mostra-se sempre carregado com detalhes caprichosos que brilham em razão da exuberância de comentários sagazes, filmados de uma maneira com a qual não estamos acostumados a ver. Indo por direções estranhas, a narrativa fabricada por uma mente fértil faz de sua sátira um admirável entretenimento.

Renato Caliman
@renato_caliman

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