Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 12 de setembro de 2019

O Tradutor (2018): as consequências de Chernobyl para Cuba

De maneira muito sensível e sutil, drama cubano conta a história de professor obrigado pelo governo a trabalhar como tradutor em hospital que cuidava de crianças com doenças causadas pelo acidente de Chernobyl.

Quando os territórios atingidos pela explosão de Chernobyl começaram a ter surtos de doenças causados pela radiação, uma das estratégias para lidar com isso foi pedir ajuda internacional para as crianças enfermas. Tendo os melhores especialistas em patologias, Cuba foi um dos primeiros países a oferecer todo o suporte e assistência necessitada pelas vítimas. Um dos problemas é que a comunicação entre os hospitalizados e os médicos, por causa dos idiomas distintos, era muito precária. Assim, o governo convoca professores que tinham aptidão na língua russa para trabalharem como tradutores, auxiliando na interação entre doutor e paciente. Um dos professores convocados pelo governo foi Manuel Barriuso Andino, pai dos irmãos Rodrigo Barriuso e Sebastián Barriuso, que decidem contar sua história no longa-metragem “O Tradutor”.

Manuel Barriuso é incorporado no personagem Malin (Rodrigo Santoro, “Bicho de Sete Cabeças”), professor de Literatura Russa que é obrigado pelo governo cubano a trabalhar como tradutor na ala infantil, no turno da noite, em um dos hospitais de Havana. Assim, o filme acompanha Malin ao tentar se adaptar a sua nova realidade, tendo que lidar com a tensão de ver crianças extremamente debilitadas e esmorecendo todos os dias. Essa situação intercala com sua relação com a esposa grávida e seu filho, e quanto mais o professor mergulha dentro do hospital e cria laços com os pacientes, mais ele se distancia da sua vida dentro de casa, se tornando um pai e um marido ausente.

Diferente de obras que abordam a explosão nuclear, como a série “Chernobyl”, os irmãos Barriuso trazem um olhar surpreendentemente terno e melódico para o assunto. A claridade na fotografia e a predominância de cores primárias, como o azul e o branco, causam uma sensação constante de pacificidade e remanso, o que só muda quando as tomadas adentram os quartos do hospital e o foco passa a ser o sofrimento e aflição sofrido pelas crianças. Nestes momentos, as luzes são abafadas e as cores secundárias, como é o caso do verde, predominam, e é aqui que o sofrimento daquelas crianças se torna realmente visível. Essas mudanças que acontecem de acordo com o ambiente provocam um equilíbrio crucial para a proposta da produção, que acaba conseguindo tratar de um tema extremamente delicado e doloroso da uma forma sensível, tornando a experiência de assisti-lo angustiante, mas, ao mesmo tempo, encantadora.

O problema é que, em alguns momentos, a tentativa de alcançar essa delicadeza e dramaticidade para o longa é, de certa forma, exagerada. Um dos exemplos mais concretos disso é quando Malin, depois de receber uma notícia, decide caminhar pela praia. A sequência, apesar de muito bem filmada, parece estar ali sem motivo algum, e a impressão que fica é que ela está sendo utilizada somente como uma maneira de carregar o longa, mais ainda, de lirismo e de sensibilidade, prejudicando a organicidade da história. Aliás, não há nenhuma necessidade para isso, já que o filme por si só já possui uma beleza notável.

Porém, mesmo com certos exageros na narrativa, as atuações são de uma graciosidade memorável, e Santoro demonstra (mais uma vez) um profundo saber de sua arte. Malin é um personagem cheio de camadas que vão sendo descobertas ao longo da obra. Ele muda de personalidade de acordo com quem e onde está. É um homem muito duro, quieto e distante dentro de casa, mas no momento em que entra no hospital, se torna um homem gentil, carinhoso e presente. Santoro trabalha essas camadas com uma maestria encontrada somente naqueles que já alcançaram o auge de sua experiência, e entrega uma de suas melhores atuações em filmes estrangeiros.

Em suma, “O Tradutor” conta uma situação extremamente cruel e infeliz, mas de uma importância gigantesca – tanto no geral, como uma forma de mostrar um momento desconhecido da história de Cuba, mas também especificamente para os dois diretores. Eles foram capazes de mostrar o quão forte e significativa aquela história é para eles – e fazem isso com uma sensibilidade e sutileza deleitável.

Ana B. Barros
@rapadura

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