Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Carrie, a Estranha (1976): um clássico que não parou no tempo

Adaptação da primeira obra de Stephen King utiliza o terror como base para tratar de assuntos cotidianos na vida de boa parte dos adolescentes e consegue fazer isso com maestria.

Clássicos são filmes que conseguem deixar uma marca cultural. Eles são responsáveis por definir gerações após gerações – mesmo décadas depois de sua primeira exibição – e, muitas vezes, determinam o tipo de cinema que seria feito daquele momento em diante. Em 1976, Brian De Palma (“Scarface”) assinaria um desses filmes que mudaria a história da sétima arte: “Carrie, A Estranha”. Sendo uma adaptação do primeiro romance de Stephen King, o terror e o suspense seriam usados como base para abordar temas que permeiam a vida de boa parte dos jovens em crescimento, como o bullying, as relações entre pais e filhos e a descoberta da sexualidade.

Carrie White (Sissy Spacek, “Histórias Cruzadas”) é uma adolescente que, ao ter a sua primeira menstruação, descobre que possui dons telecinéticos que tendem a se manifestar quando a jovem está em estado de opressão e violência. Filha da fanática religiosa Margaret White (Piper Laurie, da série “Twin Peaks”), Carrie vive em um ambiente de grande hostilidade, sendo privada do convívio social e constantemente sofrendo abusos psicológicos de sua mãe. Isso faz com que ela se torne uma menina muito tímida, retida e, como dito no título da obra, estranha. Como é de praxe em histórias americanas de adolescentes, essa timidez de Carrie é um prato cheio para os bullies de sua escola, que a aterrorizam de todas as maneiras possíveis.

O terror vivido pela protagonista é evidenciado em todas as particularidades de Carrie. O cabelo longo, escorrido e normalmente cobrindo o rosto, consegue ilustrar todo o seu caráter antissocial e desconfiado. Seu figurino revela uma menina fechada em si mesma, escondida em camadas e mais camadas de roupas, sempre em cores dessaturadas e insípidas, camuflando qualquer resquício de alacridade que pudesse sentir. Essa falta de coloração em suas vestimentas é também perceptível em seu olhar, que não apresenta brilho algum, que é acanhado, que sempre mira o chão e nunca encara as pessoas. Além disso, ela está frequentemente sendo mostrada ao lado de grades de portas e janelas, o que é um lembrete constante da sua condição de quase clausura imposta pela mãe. Sissy Spacek trabalha com essas características distintamente, entregando uma personagem atormentada, que transparece dor, apreensão e pânico em todos os momentos.

Apesar de Carrie ser o ponto central da história, ela não é a única personagem do longa que parece se encontrar em uma posição de mortificação. Sua mãe é um retrato perfeitamente pintado da insanidade que o fanatismo religioso pode provocar em alguém, e Piper Laurie a entende precisamente. Em uma das cenas de maior tensão do filme, quando Margaret narra a primeira relação sexual que teve com seu pai, a atriz consegue exteriorizar toda a loucura e exaltação da matriarca. A sua forma de falar, descontroladamente e quase gritando, a agressividade com que ela segura a protagonista, o seu semblante rindo e, ao mesmo tempo, com um ar de desespero angustiante, mostram toda a complexidade e bizarrice da matriarca. Neste momento percebe-se que Margaret, assim como Carrie, é uma mulher atormentada, mas que, diferente da filha, é atormentada por si mesma, pelas vozes que circundam sua mente a todo momento e que controlam as suas ações, agindo “em nome de Deus” e contra qualquer “pecado” que ela poderia vir a cometer.

A relação entre mãe e filha é construída por Brian De Palma de maneira impecável. Nas cenas de discussões entre as duas, o uso dos planos plongée (o enquadramento é feito de cima para baixo, e aqui, o foco é principal é Carrie) e contra-plongée (o enquadramento é feito de baixo para cima, com foco em Margaret) é uma escolha certeira e sagaz, já que eles destacam a posição de poder da mãe em relação a filha, e conseguem até mesmo fazer com que a audiência sinta-se tão inferior quanto a jovem. Em um dos ápices dessas discussões, quando Carrie está prestes a sair para o baile, o diretor opta por utilizar o ângulo holandês para captar o momento, e ele faz isso louvavelmente, salientando todo o desequilíbrio e a obscuridade das personagens.

Não é só nos enquadramentos que De Palma mostra seu talento. Com os diretores de arte Jack Fish e Bill Kennedy, o diretor cria uma ambientação extremamente claustrofóbica e desoladora na casa de Carrie. Aliás, utilizar do sentimento de claustrofobia e opressão para ampliar a tensão parece ser um artifício utilizado constantemente por Stephen King em seus livros e nas obras que os adaptam, como é o caso de “Louca Obsessão” e “O Iluminado“. A ausência de luz e a sensação de uma sujeira angustiante intensificam o estado de opressão vivido pela adolescente, como se ela estivesse vivendo em uma prisão – e que, de certa forma, ela está. Isso é aguçado mais ainda pela presença de diversas imagens religiosas. Velas, pinturas e estatuetas estão espalhadas por todos os cômodos, vigiando Carrie em todos os lugares possíveis.

“Carrie, a Estranha” é um filme (e um livro) que não parou no tempo. As suas temáticas, que na época estavam apenas começando a ser discutidas, se mostram mais atuais ainda no século XXI, e Brian De Palma prova que consegue operá-las com destreza. É por isso que, mesmo depois de 40 anos de seu lançamento, o trabalho de De Palma (e de Stephen King) permanece mantendo toda a sua grandiosidade.

Ana B. Barros
@rapadura

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