Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 09 de agosto de 2019

Abaixo a Gravidade (2017): baía de todos os homens

O longa do diretor baiano Edgard Navarro é uma ode à liberdade no sentido amplo com ótimo elenco e visuais inspirados.

O que “Melancolia” de Lars Von Trier e “O Céu de Suely” de Karim Aïnouz teriam a ver com o autêntico cinema baiano de “Abaixo a Gravidade”? O diretor e roteirista Edgard Navarro (“O Homem que Não Dormia”) lança mão de suas referências cinematográficas para satisfazer a necessidade de contar a jornada pessoal do senhor Bené (Everaldo Pontes) pela cidade de Salvador, retratada aqui de maneira bastante incomum.

Bené é um conhecido curandeiro da cidade de Capão, na Chapada Diamantina, interior da Bahia. Praticar bondade, ioga e sincretismo infelizmente para ele não são suficientes para evitar totalmente a angústia de perder a vitalidade ao envelhecer. A chegada de Letícia (Rita Carelli), mãe solteira disposta a ter seu filho no vilarejo, desperta o interesse de Bené e, quando ela decide retornar à Salvador, é a desculpa que ele precisa para verificar a saúde na capital. O roteiro até então segue uma estrutura clássica de estudo de personagens, apresentando lentamente as camadas do protagonista, e até começa por um flashforward para indicar a direção que a trama vai tomar. Porém, a chegada à Baía de Todos-os-Santos oferece ao filme a oportunidade de abraçar a simbologia e ganhar ares de sonho quando Bené caminha pelos bairros e cruza com novas marcantes figuras.

A “gravidade” do título é o alvo do realizador. De certa maneira até literalmente, quando inclui na história a iminente passagem do asteroide “Laetitia” que promete afetar a força da gravidade na terra de Wagner Moura e Glauber Rocha. Por mais que Edgard Navarro beba do realismo fantástico felliniano para construir suas imagens, trata-se especificamente da essência do conceito da gravidade de Nietzsche: aquilo que atrai a humanidade para baixo e nos afasta da plena liberdade. Tal discurso vai além da luta de Bené contra as limitações da velhice. Ele cresce em escopo quando o diretor nos apresenta a mais três personagens: Maisselfe (Bertrand Duarte), um vaidoso e egoísta homem de meia-idade e da classe média, Galego (Ramon Vane), um velho e bruto morador de rua, e Mierre (Fabio Vidal), um jovem andarilho e sonhador.

A riqueza de ideias trabalhadas em um mise-en-scène leve, instigante e bem-humorado faz de “Abaixo a Gravidade” um verdadeiro deleite visual. A trajetória de Bené, com seus desejos e frustrações, é acompanhada pelo público com tamanha empatia que não é difícil compreender as variadas mensagens e propostas do diretor. A partir das angústias dos seus personagens, Edgard trabalha a cultura afro-baiana para então confrontá-la com o dito racionalismo europeu, marcado pela representação da famosa estátua de Auguste Rodin. É como um alerta simbólico para que as coisas que deveriam ser essencialmente naturais para o ser humano prevaleçam contra tudo que o arrasta para baixo, essa tal gravidade.

Enquanto as imagens demonstram segurança, a trilha sonora segue um caminho contrário, redundante ao que é visto em cena e não funciona para trazer unicidade à obra. A mudança na linguagem também não é gradual e as diferentes propostas são apresentadas um pouco tardiamente no roteiro, como uma virada inesperada. A perspectiva simbólica de Mierre, com sua preocupação em costurar asas para voar, é diferente do mundo mais satírico de Maisselfe, que por sua vez também está longe da realidade de Galego. Há até a quebra da “quarta parede” em alguns momentos. No entanto, a costura desses elementos é ótima e qualquer estranhamento acaba funcionando a favor do filme.

Além disso, são várias as mensagens propositalmente inseridas na forma de pichações, pôsteres, cartazes e figurino. O longa assim recompensa quem assisti-lo novamente para identificar melhor esses detalhes. Eles ajudam a fortalecer o panorama do filme ratificando as ideias centrais, que também ecoam nas vozes e atitudes dos personagens.

Apesar da capa de cinema regional e flagrante iconoclastia, “Abaixo a Gravidade” desenha uma história universal, com tipos que poderiam viver em qualquer outro canto do mundo contemporâneo. Por exemplo, os conflitos de Bené e Maisselfe são puramente existenciais, além de estarem relacionados com a identidade deles como homens, suas “masculinidades”. Com um retrato fascinante da Bahia e divertido mergulho nas experiências dos personagens, a obra apresenta um discurso virtuoso, filosófico e repleto de referências simbólicas contra a “gravidade” que nos impede de viver o presente de maneira plena e autêntica.

William Sousa
@williamsousa

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