Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 07 de agosto de 2019

No Coração do Mundo (2019): lugares e não lugares

Trabalhando com naturalidade e realismo as relações entre os indivíduos e os espaços (concretos ou não), a obra oferece um olhar bastante complexo para nossa realidade urbana.

O espaço urbano vem se tornando um tema cada vez mais frequente na cinematografia brasileira contemporânea. Os conflitos de classe na região metropolitana de Recife foram tratados em “O Som ao Redor“; o encanto do cotidiano em Contagem foi trabalhado em “Temporada“; e as relações pessoais com o ambiente metropolitano mineiro são o foco de interesse de “No Coração do Mundo“, de Gabriel e Maurílio Martins. No filme, o conceito de lugar não se restringe ao significado concreto do termo e se expande também para possibilidades abstratas.

Um dos personagens não deixa de ser a cidade de Contagem, palco para o desenvolvimento das histórias dos moradores da comunidade local. Na linha narrativa central está Marcos (Leo Pyrata), um homem que sobrevive dos pequenos crimes que aplica até reencontrar a amiga Selma (Grace Passô, “Temporada“) após um tempo distantes. Ela o convence da possibilidade de fazer um assalto bem-sucedido. Entretanto, o plano somente poderia ser executado com a ajuda de uma terceira pessoa e Ana (Kelly Crifer), namorada de Marcos, hesita em participar.

A cidade mineira se materializa como um lugar físico efetivamente, onde personagens vivenciam suas jornadas, conflitos e emoções. De forma realista, os moradores interagem com o espaço de modo particular. Alguns demonstram estagnação sem ter consciência das mudanças necessárias em suas vidas, como Marcos que dá seus pequenos golpes, se comporta como um sujeito malandro, mas depende de todos ao seu redor; outros se incomodam em continuarem vivendo em Contagem, como Ana, que é trocadora de ônibus e está descontente com a profissão, e Selma, que trabalha como fotógrafa e não suporta mais viver no local a ponto de planejar um crime que altere completamente sua vida. Há mais alguns que estão adaptados à região e vivem bem ou, ao menos, em busca de sua sobrevivência, como Rose (Barbara Colen, “Aquarius“), que trabalha em dois empregos e ainda tem marido e amante, Brenda (Mc Carol), que cuida da avó doente, e Miro (Robert Frank), que se relaciona às escondidas com Rose e tem problemas com o irmão Beto (Renato Novaes, “Temporada“).

Enquanto as trajetórias dos personagens se desenvolvem segundo suas próprias relações com o local, a narrativa também apresenta um outra noção de lugar, ou melhor, um não lugar. Essa outra noção não é algo concreto, pois se identifica como um objetivo idealizado ao invés de um lugar de forma definida, e aparece nos arcos dramáticos dos indivíduos insatisfeitos com a cidade onde vivem. Ana simboliza a idealização dos não lugares ao dizer para Marcos que gostaria de sair dali para conhecer toda a vastidão que o mundo oferece (cena em que se vê ao fundo a geografia do entorno de Contagem) e ao decidir largar o trabalho no ônibus. Selma verbaliza essa ideia para Marcos se referindo ao título do filme, que significaria o próximo lugar para onde se deseja ir e se entende que pode alcançar algo melhor, e também arquitetando o assalto que lhe poderia dar uma vida melhor acumulando dinheiro.

Contudo, o lugar não é considerado apenas como a representação da infelicidade. Pelo menos em alguma situação, cada personagem vivencia bons momentos na simplicidade do cotidiano: Ana conversa animadamente com a motorista do ônibus sobre assuntos prosaicos, partilhando suas experiências; Ana e Marcos desfrutam da companhia um do outro no alto da laje, banhando-se de sol; Selma e Rose conversam descontraidamente sobre a movimentada vida de Rose ao começar a trabalhar na Uber. Cenas assim se sustentam pelos diálogos de grande naturalidade e humor genuíno, advindos de brincadeiras entre amigos, frases repletas de gírias, palavrões e coloquialismos, comportamentos espontâneos e realistas e de conversas sobre temas banais, como acontece na conversa entre Mc Carol e Marcos no carro.

A direção de atores de Gabriel e Maurílio contribui muito nesse sentido ao extrair desempenhos sólidos e uniformes de todo o elenco, permitindo que eles atuem como se estivessem em suas rotinas comuns e não criando um personagem – o destaque partilhado entre todos é o que garante o brilho da equipe como um todo. Os cineastas também têm o mérito de utilizar planos longos e estáticos enfocados nos atores para estender o tempo dos diálogos e das performances e, assim, estabelecer a identificação do espectador aos conflitos apresentados. O ritmo dessas sequências segue cadenciado, em uma representação fiel da transição das cenas de nossas próprias vidas, acompanhando os cortes sutis da movimentação do olhar.

Há também uma sintonia entre o tema e a composição dos quadros e cenários. Frequentemente, planos gerais enquadram as construções e a geografia da cidade e planos conjunto mesclam os personagens aos espaços por onde transitam. Além disso, as locações transmitem a vivacidade das marcas dos moradores e do tempo (paredes rachadas e pichadas, portões de cores desgastadas…) – afinal abordar a relação subjetiva entre indivíduos e ambientes inclui a apresentação visual desses cenários. Paralelamente a isso, os diretores evocam uma energia vinda das múltiplas trilhas sonoras, desde o hip hop na apresentação até as sequências em que se ouve música sertaneja e religiosa.

É na dualidade entre lugares concretos e não lugares idealizados que “No Coração do Mundo” discute nosso relacionamento com o ambiente, abraçando-o, adaptando-se ou rejeitando-o. Desse modo, quando o assalto chega, seu propósito é muito mais mostrar como decisões extremas parecem ser uma saída mais imediata a questões, que na realidade são mais complexas. Questões que envolvem nossa interação com o espaço, com nós mesmos e com o outro.

Ygor Pires
@YgorPiresM

Compartilhe