Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Lazzaro Felice (Netflix, 2018): o retorno do neorrealismo italiano

Alice Rohrwacher apresenta uma bela crítica às relações de exploração de trabalho com um longa cheio de elementos do Neorrealismo Italiano.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Itália, na condição de país derrotado, se encontrava tentando lidar com todas as consequências do embate mais sangrento da história mundial. Com uma crise política em progressão e as taxas de desemprego disparando, é evidente que as sequelas da guerra iriam influenciar diretamente na indústria cinematográfica do país. Justamente como uma forma de encarar essas consequências é que surge o Neorrealismo Italiano. O movimento tinha a intenção de retratar a realidade da população italiana da forma mais crua possível, inclusive preferindo utilizar atores não profissionais – ou até mesmo não atores – surgindo daí alguns dos maiores clássicos da história do cinema, como “Ladrões de Bicicleta” e “Roma, Cidade Aberta”. Mais de 50 anos depois, a diretora e roteirista Alice Rohrwacher (“As Maravilhas”) retoma elementos do Neorrealismo Italiano em “Lazzaro Felice”, disponível no Brasil pela Netflix.

Lazzaro, interpretado pelo iniciante Adriano Tardiolo, é um jovem morador da fazenda Inviolata. Durante uma visita da dona da fazenda, a Marquesa Alfonsina de Luna (Nicoletta Braschi, “A Vida é Bela”), a polícia descobre que ela tem mantido todos os moradores de Inviolata como escravos, sem receber salário e em condições inumanas. No momento em que ocorre essa descoberta e os moradores são levados pela polícia para a cidade, Lazzaro cai de um penhasco e acaba sendo deixado para trás. Anos depois, o jovem italiano ressuscita e começa uma jornada em busca de seus amigos da fazenda.

Seguindo a tradição neorrealista, Rohrwacher decide escalar como intérprete do papel principal alguém sem experiência alguma, e isso é um tiro certeiro. Lazzaro não é um personagem fácil. Ele carrega consigo uma pureza que tem sido cada vez menos retratada em obras cinematográficas – e na vida real também – e que imediatamente nos remete a um jovem Tom Hanks no papel de Forrest Gump. Adriano Tardiolo, mesmo sem experiência, consegue entendê-lo perfeitamente, entregando uma atuação impecável. O seu olhar, vazio e ao mesmo tempo cheio de sentimentos, consegue evidenciar todo o ar virginal que cerca o personagem, fazendo com que seja praticamente impossível não se sentir tocado por ele. Mesmo com pouquíssimas falas, Tardiolo consegue externalizar toda a bondade e inocência que Lazzaro carrega. Isso acontece, principalmente, porque ele preenche essa ausência de falas com sua linguagem corporal – sempre andando de forma muito acanhada, mas ao mesmo tempo de cabeça erguida e olhando para frente, com a mesma expressão de calmaria . É assim que, aos poucos, a audiência vai percebendo que ele não é apenas um jovem italiano de bom coração, mas que é, primordialmente, angelical e imaculado. Isso vai ser reforçado com o desenvolver do roteiro, que coloca o protagonista em um patamar de divindade, de um ser bíblico. Lazzaro retorna à vida por um lobo que o acompanha durante toda a sua trajetória, o que é uma referência direta a Lázaro, personagem bíblico que foi ressuscitado por Jesus Cristo.

A escolha de Adriano Tardiolo não é o único acerto da diretora e roteirista italiana. Apesar da narrativa ter críticas muito fortes à sociedade e às relações de trabalho, como é de praxe em obras neorrealistas, a escolha de contar uma história utilizando elementos de realismo mágico traz uma atmosfera muito sensível e delicada para o longa. Além disso, a construção dos personagens é tão bem feita que a audiência consegue, facilmente, se conectar com cada um deles. Rohrwacher decide focar não apenas nas ações de cada um, mas sim em como eles chegaram até aquele momento. Assim, mesmo quando um deles tem atitudes que não são consideradas aceitáveis na nossa sociedade, como roubar um posto de gasolina por exemplo, o que prevalece é a empatia e a compreensão do porquê aquilo está acontecendo.

Além do roteiro, os aspectos técnicos conseguem enfatizar a decadência da sociedade representada pelo filme, e sua estética é um dos pontos que mais chamam atenção. Realizada em formato Super 16, a fotografia tem uma aparência de sujeira muito forte e angustiante, o que mostra todo o depauperamento dos ambientes, seja no campo ou na cidade. Para conseguir alcançar um equilíbrio, essa angústia trazida pelas imagens é amenizada pela trilha sonora – na verdade, pela falta de trilha sonora. O silêncio, que é interrompido por uma música baixinha aqui e ali, cria uma ambientação muito íntima e acolhedora, e tira qualquer melancolismo exagerado que poderia ter sido expressado nas cenas em que o realismo mágico e o surreal predominam.

“Lazzaro Felice” é uma obra atemporal. Misturando boas atuações com uma estética formidável, Alice Rohrwacher faz uma crítica forte, bela e sensível à exploração de trabalho, e ainda consegue, graciosamente, homenagear um dos momentos mais importantes da história do cinema: o Neorrealismo Italiano.

Ana B. Barros
@rapadura

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